quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Sermões

Não se deve esperar das pessoas mais do que a sua essência recoberta por grossas camadas de hipocrisia. Certos indivíduos, todavia, desinteressam-se de esconder suas essências, conscientes das conseqüências disso. Pode-se dizer que o padre M. fosse um destes seres conscientes de si, convicto o suficiente da sua própria identidade para não precisar chafurdar na lama do “tudo é permitido”.

Jesus andou entre as prostitutas e os cobradores de impostos? Sim. Ele pregou às suas ovelhas que se comportassem como prostitutas e cobradores de impostos? Não. Jesus disse “Amai ao próximo como a ti mesmo” e também disse “o corpo é o templo do espírito”, Ele não disse para amarmos o próximo em sua promiscuidade ou erro e não disse para seguirmos os desígnios do corpo e ignorarmos os desígnios do espírito. Jesus não disse para os homens irem às putas e amá-las em sua devassidão, ele disse para amarmos os devassos como amamos aos nossos filhos, irmãos, pais. Quem vê um filho cair na devassidão e o aplaude? Acaso um bom pai não é aquele que procura guiar seu filho pelo caminho da retidão? 

É certo que o velho padre M. não era a favor de um Estado onde se aprovassem Leis que restringissem o direito das pessoas fazerem suas próprias escolhas, porque a Deus não interessa a obediência forçada e hipócrita. A liberdade que Deus nos concede é a liberdade para seguirmos por caminhos retos e colhermos os bons frutos da nossa bondade ou a de seguirmos pelos caminhos tortos e sofrermos com o amargor de nossos maus frutos.

Por isso não são censuráveis as censuras do velho padre M., são frutos de seu amor pelo próximo e seu sofrimento pelos que são causa de seu próprio infortúnio. Feliz é o homem que não é causa de seu próprio infortúnio, este pode se considerar inocente.


(Trecho de um de vários sermões que escrevi para um antigo personagem padre. Mal creio que a cristandade sobreviva sem mim.)

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

A sombra das horas

Começou com a instalação do dispositivo sonoro na torre da igreja. Duvidou do que ouvia. Sinos, como? Quando? Não tivera notícia de qualquer obra nesse sentido. De fato, não houve obras, tratava-se apenas de uma saída de som ligada a um computador. Muito mais simples e barato do que um pesado sino metálico. O "para quê" ou o "por quê" não saberia explicar, sequer ousou perguntar. A existência de uma aparelhagem de som que imitava sinos, pior, imitava uma curta melodia executada por sinos seguida por respectivas batidas indicativas do número de horas dos dias, isso tudo enfim, não devia lhe dizer nada. Não devia, mas, desgraçadamente, dizia.

Hora a hora, hora a hora, o som invadia a sua privacidade e a lembrava de que mais uma hora havia passado. O tempo não corria mais livre e solto, incalculado, ele passou a saltitar, fazendo pausas contemplativas. Curto silêncio intercalado por marcações escandalosas. É tempo, é tempo. Já passou, já passou. As horas ficaram curtas após aquela marcação invasiva, curtas demais para o seu gosto. Sentia que estava desperdiçando o seu dia em coisas inúteis. Não podia se sentar para assistir TV, assim que o bater lento e metódico dos falsos sinos a alcançasse, sentiria culpa. A leitura de um livro  nunca lhe pareceu demorar tanto. Absurdo, cem páginas apenas, e se passaram quatro horas! 

Aquele peso sobre o peito, aflição antecedente de compromissos importantes, iniciava muito antes. Seus dias tornaram-se curtos, muito curtos. E estéreis. A passagem do tempo agora  só lhe trazia sentimentos negativos. Estava muito velha, não haveria mais tempo para correr atrás de felicidade ou realizações, não sobrava tempo durante o dia para se dedicar aos sonhos, as obrigações começaram a ocupar todo o tempo. As suas esperanças receberam um toque de recolher, conformava-se pouco a pouco com a aproximação inevitável da morte.

Queria chorar, sem razão, porém, até este simples extravasamento parecia luxuriante demais  para aqueles dias tão curtos. Como desejava que o tempo passasse enfim, inteiro e definitivo, corresse, que o enredo da sua vida disparasse de uma vez para um ponto mais à frente, onde não sentisse a angústia daquele arrastar macilento das horas sobre seus ombros.

A sombra das horas corria ligeira por sua vida em branco. Faltava-lhe tinta para preencher  o vazio.

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Criação

Para que me criaram, pergunto. Sou obra de algum arquiteto, há propósito na minha preparação  para o mundo, quero saber. Nasci, como dizem, para ser feliz, ou nasci, como dizem, para penar. Tenho liberdade para decidir a que vim, talvez, escolher o que devo ser. Talvez não, posso ter sido criada por acaso, sem razão, fruto de um desejo incerto, largada ao léu, tornei-me o que quis, sem querer, não sei.

Qual seu sonho? perguntou a menininha. Tão inocente, quer saber o que eu sonho, mas eu não sonho, lamento. Realizei todos os meus sonhos, só que cedo demais, sobrou tempo para pensar, devia ter me demorado mais no processo, assim restaria pouco para a apreciação de mim, esta obra, sem arquiteto, sem propósito, despreparada para o mundo.

Perdi os objetivos, aliás, cumpri-lhes. O que me resta? Matar o tempo, matar o tempo, matar o tempo...

E se eu fizer, disser, quiser algo novo, que me dirão? Que não. Devo contentar-me com o realizado, estancar qualquer vontade, estacionar ali e deixar de estúcia.

Obedecerei, é claro, a mim, não a outro, não há outro, hei. Resto-me. Criei-me.

terça-feira, 6 de agosto de 2013

Chamada perdida

O telefone celular dava sinal de ocupado o tempo todo. Devia estar na estrada, por isso fora de área. Também tinha o hábito de desligar o celular durante as aulas, para não interromper os professores. Desistiu de tentar. Ela retornaria a ligação quando estivesse disponível.

Era um dia de agosto, o vento fazia com que aquele dia quase na primavera ficasse tão frio quanto um dos dias de junho, mas sem chuva. As nuvens escuras no céu sinalizavam o mau tempo que se aproximava. Ao que parece, a frente fria passaria por eles para ir se despejar em locais mais propícios a precipitações climáticas. Ali chovia quase nunca, as chuvas sempre passavam direto, com pressa.

A revoada de urubus ao norte combinava perfeitamente com o cinza daquela manhã. Ao menos, os jardins da praça estavam sendo bem regados, garantindo assim um verde revigorante para os seus olhos no caminho para o trabalho. A quantidade de cães vadios rasgando sacolas de lixo, contudo, denunciava o desleixo dos moradores do bairro para com a limpeza pública. O vento soprava e todos os papéis daqueles malditos sacos colocados fora do horário do recolhimento suspendiam-se sobre as cabeças dos passantes, prendiam-se aos fios de eletricidade e sinalizavam terrenos com capins altos. No meio daquele capinal da esquina, certa noite, havia erguido a saia dela às pressas, pela primeira vez, com medo de serem vistos ou ouvidos pelos bêbados do bar de seu tio.

Depois daquele dia ela foi sua sempre, onde quer que escolhesse, não importava quão perigoso fosse. Mas assim que casaram tudo mudou, ela decidiu fazer aquelas viagens estúpidas, todas as noites, sem ele. O que havia para ser feito naquele fim de mundo sem ela? Vinha tentando convencê-la de que em breve ganharia o bastante para pagar uma escola particular para ela, sem sucesso, porém. Ela desejava ser independente, se formar, ganhar tão bem quanto ele. Gostaria de vê-la contentar-se com aquilo que já possuíam, não era muito, mas era o suficiente para ele. Esse vazio de achar que não era o bastante para ela preenchia os pensamentos dele todo o tempo. Às vezes, preferia ter escolhido outra para ser sua, uma mulher com a cabeça menos cheia de caraminholas sobre independência, profissão, sonhos, viagens. Por que havia escolhido aquela mulher preocupada em subir na vida, quando a maioria delas contenta-se com roupas novas pela ocasião das festas?

Havia aquela de quadris muito largos, vivia dando mole para ele, devia achá-lo muito interessante. Tinha 5 anos mais que a sua mulher, jamais colocara os pés para fora da cidade. Não tinha cara de quem sonhava com nada, mas jeito de quem põe as mãos onde precisa e se lhe pedem.

O dia passava lento demais para ele, sempre preocupado com o que passava pela cabeça dela. Talvez ela não o quisesse mais em breve, porque ele não tinha sonhos como os dela. E se depois de formada ela arrumasse um emprego bom longe dali, em um lugar que não precisassem dos serviços dele? Não desejava ser encosto dela, muito menos gigolô. Um homem precisa ser o provedor, indispensável. Ser casado por ser não faz durar casamento. A vida seguia, assim, cheia de incertezas e medo de perdê-la.

O celular vibrou quase no final do expediente na loja. Era ela. Atendeu com um sorriso. Do aparelho saltou uma voz masculina, perguntando se ele a conhecia, qual era o parentesco e avisando que ela estava morta. Um tiro, na beira da estrada, assalto. O policial que atendia a ocorrência usava o celular da vítima para tentar localizar a família.

Era o fim de todas as dúvidas.

segunda-feira, 29 de julho de 2013

Vexame

Tenho raiva de pessoas que escrevem versos de amor, as desprezo. O que elas pensam? Que são belos? Belos como seus amores remelentos.

Das pessoas que se fazem passar por loucas tenho pena. Pena dessa necessidade boba de estar na moda do último século literário. Os loucos saíram de moda. Quer ser fora de moda? Seja então, mas sem fingir loucura. Acorda, loucos não escrevem em blogs, a não ser que seja para passar receitas de bombas.

Fico enjoada com quem vomita suas perversões na folha em branco. Peitos, coxas, ânus. Tem algo novo? Inventaram novas perversões? Existe ainda quem não tenha lido cú em qualquer parte? Sem falar que perversões foram moda no século XIX. Quer dar uma de Bruna Surfistinha, esquece. O Marquês de Sade veio primeiro, e ele tinha ideias políticas ao menos.

É preciso que seja tudo tão descompromissadamente tolo? Banal? Vulgar.

Vou lhes ensinar o que ainda vende em literatura.

MENTIRAS.

Sabes contá-las? Sabe fingir? Não me dê uma de Pessoa, finja apenas.

Eu gosto de fingir que mato as pessoas que odeio. Sublimação pura. Ritual sacrossanto. Morrem todas, feito formigas esmagadas.

Mas não ache que sou perfeita. Eu tenho dos meus vexames. Eu faço versos solitários, do ser pálido que espia o abismo. By Fausto, Goethe, ultrarromantismo canalha de quem não sabe mentir lorotas alegres.

Porque alegria e boas esperanças, mensagens brancas em pés de pombas, poupem-me, ficaram para as donas de casa.

RACIOCINAR.

Racionalizar, desenhar com régua, medir com compasso. Eis o que nos falta. Sem nos fazer passar por psiquiatras ou loucos. Vamos tentar nos fazer passar por Cristo, Júlio César, Gandhi e ver no que alteramos o curso da história.

MODO DE FAZER.

É o que vende. Ninguém mais sabe fazer nada, ensinar os burros parece que vai ser a profissão dos próximos dez séculos.

NÃO SE PERMITA SONHAR.

Apenas minta, ok? Ou isto aqui começa a virar diário de infância, cápsula do tempo, viagem de LSD. Focalize a ilusão, tudo novo e diverso, de preferência desagradável e plausível, ou agradável mas implausível, e não retire a pena do papel até finalizar o mito.

NÃO SEJA DEMOCRÁTICO.

Isso não rende, não vende, não edifica. Pregue a obsessão pelo futuro. Nada de aderir às novas correntes estéticas. Morra velho e gagá.

CALA-TE.

A melhor forma de não dar vexames é ficar calado. A boca aberta é chamariz do demônio.


Claustro

O mundo nunca foi tão grande quanto se supõe que seja para ela. Havia cercas em toda parte erguidas sob as mais variadas desculpas. A violência das grandes cidades, a marginalidade dos subúrbios paulistanos, a superproteção materna.
Depois teve a timidez, o horror às multidões, a dificuldade em fazer amizades, aliás, a dificuldade em cultivar amizades. Um pequeno príncipe às avessas, jogava sal em todas as raízes fraternais que pudesse perceber. Poucos a cativavam, na verdade, contentava-se com a observação dos outros mantida certa distância mínima de segurança.

Assim, o mundo ia tomando o restrito tamanho das obrigações inadiáveis, estreitado pelas relações sempre evitadas. Duas linhas retas traçadas no chão da cidade resumiriam todo o seu universo de movimento. Não havia, portanto, pessoa mais previsível.

Isso se não levarmos em conta que o mundo é bem maior do que se revela na matéria. Acima do espaço existe o tempo, e nele o tempo psicológico, no qual anos podem ser vivenciados em minutos. Tempo cujo conteúdo não se deixaria resumir por poucas laudas de explicação. E havia o espaço dentro do tempo, aquele capaz de nos levar à toda parte, atrás dos sons e formas insinuadas; imaginação, arriscariam. Pensamento, liberdade, sonho. Itens tão escassos no mundo de hoje, acorrentados pelas ideias preconcebidas apregoadas por todos os meios comunicativos. Mortas a curiosidade e a criatividade do mundo moderno, quem as consegue cultivar em vasos escondidos é dono de inestimável fortuna.

Ela as possuía. Guardava em segredo esses portais para outros mundos dentro de seu silêncio, mesquinha, como sempre, com aquilo que deveria revelar aos outros.

Quem a via, contudo, não podia supor. Deixava transparecer apenas o silêncio mudo, os passos lentos e repetitivos, o ir e vir cronometrado das obrigações cumpridas a contra gosto. Mas, por dentro, ela sabia. O mundo não tinha limites.

A casa da morte



Pra encher a barriga
voltava do mercado com sacolas recheadas de verduras brancas.
A médica recomendava usar calcinhas brancas e passá-las com ferro branco.
Pra evitar as doenças brancas que a chuva traz.

Mas o destino branco não falha,
desaba branco sobre os telhados sem cor.

É inverno e a neve e o frio chegam como sempre, negros
Secam os olhos dos velhos chorosos,
de lágrimas brancas mortiças,
e as levam para o norte na direção da morte.

A casa da morte, velha morada úmida, cercada de raízes ocas
abriga a todos os desgarrados da vida,
a terrível e malvada que a ninguém perdoa.

Abriga também as lágrimas brancas, coletadas pela neve sempre negra que veio do sul.

quarta-feira, 17 de julho de 2013

A voz

Devíamos ser livres para dizer o que quiséssemos. Mas, se nem o nosso pensamento é livre como a nossa voz pode ser? Volta e meia nos pegamos tendo medo das nossas ideias, por serem diferentes demais, ousadas demais. Achamos que a regra é pensarmos todos igual. E assim não somos livres para dizer o que desejamos, sob pena de sermos tomados por loucos.

Então nos calamos, permanecemos fechados com nossas próprias ideias. Por que tudo o que dizemos e pensamos precisa estar certo? Por que não podemos estar errados? Será que é tão difícil sermos aceitos com nossos erros, nossas dúvidas, nossas maluquices ao ponto de não merecermos atenção?

É essa a individualidade perdida, eu acho. Se é que o que eu acho é importante. Dizem que não é. Mas eu sigo achando. Penso tudo ao contrário, penso torto, contradigo por vingança, repenso desnecessariamente. Não me dão a voz e eu me vingo com o silêncio. Ou eu digo o que desejo ou digo nada. Assim está bom para vocês? Falta a liberdade para discordar, exerço a liberdade de não reforçar.

Vocês não acreditam em mim, não acreditarei em vocês. Vocês riem de mim, rirei de vocês. O seu desprezo me concede a liberação de que preciso para construir uma alternativa ao desprezo. A fuga. Sim, agora eu entendo os silêncios e ausências de Lispector, as pseudo-fugas. Aquelas eram pessoas que não eram, por isso precisavam fugir. Mas, fugir não é covardia? Eu não quero ser covarde. Muito pelo contrário. Eu vou ficar e confrontá-los com meu desprezo. Manter-me-ei sã, lúcida, inteira, presente, produtiva. Quando vierem me perguntar o que achei de tudo, crentes de que eu responderei satisfatoriamente, eu direi a verdade. Nada me agradou.

Não me deixaram falar, duvidaram de mim, pensaram que eu tinha deixado de pensar, mas estavam todos enganados, eu ainda pensava, escondida, sem que vocês soubessem. 

Eu os enganei, mantive meu exterior camuflado conforme a moda do tempo, e ninguém foi capaz de dizer que eu estava achando tudo ridículo. Ou perceberam, mas fingiram não ter percebido, porque isso os incomodava demais.

quinta-feira, 11 de julho de 2013

As Três Torres ou Os desenhos de Alice

Capítulo anterior ao anterior, em que nossa heroína sem dedos projeta o embosteamento de uma Torre de Marfim

- Muito bom você perguntar a minha sugestão. Antes de mais nada, gostaria de parabenizar pela iniciativa, Chevalier, a intenção é muito boa. Apenas os meios que são por demais modestos. Está certo que a internet é uma ferramenta de grande visibilidade, mas ao mesmo tempo é um local onde todos são anônimos. Para manter viva a chama do teu movimento é necessário mais do que uma centena de simpatizantes que venham a lhe dar um retuíte ou distribuam a campanha em outras redes sociais. Um grupo de ativistas se faz com pessoas unidas sob uma forte convicção e identificação. E, especialmente, a ação física, o agir-interagir no mundo é o que dará ao movimento a notabilidade necessária para alçar a atenção da imprensa internacional. Sim, porque a visibilidade local não é o suficiente. Edward Shaw está acostumado com pessoas apontando os seus podres, tenho quase certeza de que ele considera essas pessoas quase como amigas suas, pois elas ajudam a manter seu nome em relevância. Precisamos de um grande ato simbólico que atraia os olhos do mundo sobre nós, que faça o mundo se sentir responsável por nossa desgraça e solidário com a nossa indignação.

Alice tirou do bolso um desenho feito a lápis. A gravura possuía capricho de desenhista mesclado ao zelo do projetista cujo conteúdo perturbava pela idéia em si mais do que pela inverossimilhança dos meios disponíveis para realizá-lo. O desenho dispensava explicações, era feito em forma de história em quadrinhos, com três cenas distintas. Tratava-se da Torre do Marfim em primeiro quadro, um monte de esterco no segundo quadro e no último quadro a Torre de Marfim coberta pelo esterco de alto a baixo, colorido este último quadro de um marrom bem sujo, próximo ao vermelho, com uns pintassilgos amarelos muito suspeitos.

- Vamos bostear o prédio do Shaw de alto a baixo. Depois disso ele não terá onde enfiar a cara de vergonha, vai se desculpar diante do público e se entregar para sofrer as sanções da Justiça. Promoveremos três dias de ocupação, pelos meus cálculos, umas 3 mil pessoas reunidas por três dias produzirão insumo mais do que suficiente para cobrir a superfície externa do prédio centímetro por centímetro.

A explicação de Alice estava apresentada, somente um imbecil não a entenderia, pois se até ilustração ela se deu ao trabalho de fazer para os menos favorecidos de inteligência não ficarem fora do assunto.

 Restava saber se o Chevalier era homem de audácia e visão e estaria disposto a elevar o grau de comprometimento com a causa ou se era ele mais um blogueiro cheio de papo que tem medo da tropa de choque. E claro Alice ia testar se a vampira de salto alto era uma lambe-saco do Príncipe.


O poder das massas by Alice C.

Capítulo em que a nossa heroína vampírica, negando qualquer correlação com as xaropadas dos crepúsculos por aí vigentes, mostra-se uma animada organizadora de manifestos públicos.


Se *Alice C. fosse dessas pessoas extremamente inseguras teria ficado incomodada por ninguém elogiá-la pela perfeição daquele desenho feito pelas “mãos” de uma mulher sem dedos. Mas não, Alice entendia perfeitamente o desconforto das pessoas de falarem na sua deficiência, mesmo que para elogiar a sua perícia de desenhar segurando o lápis entre os lábios ou clicando com o toco do dedo indicador no botão do mouse. A palavra de ordem nos meios educacionais é “inclusão”, a qualquer custo boa parte das vezes, mas não deixa de ser inclusão. A nossa heroína estava grata por este sentimento de recebimento e inserção de seus futuros companheiros de ocupação, afinal, estava claro que daquelas cabeças subalternas e viciadas em só dizer SIM para tudo que o sistema lhes impunha não poderiam sair ideias lá muito revolucionárias.


A empolgação do **CHE-valiê, em especial, era animadora. Ele tinha uma cara simpática e que transmitia confiança, e tinha dedos, o mais importante de tudo, o público tende a prestar mais atenção e credibilidade a quem tem dedos para lhe falar. Até quando essa pessoa não é boa em fazer story board das manifestações futuras.

Mas ainda havia o problema de se criar problema onde não há problema. E foi o que Alice disse aos seus companheiros.


- Não criem problema onde não há. O único obstáculo é o de nos dispormos a fazer e acharmos outros 2.997 dispostos ao mesmo. O poder das massas é intransponível, somente a ignorância impede que o povo comande. Chegaremos em silêncio, de maneira pacífica, de dois a dois. Quando pedirem para sairmos, nos sentaremos no chão e diremos que vamos esperar. Levaremos comida, água, agasalhos. Quando não caber mais gente na recepção, sentaremos no jardim do lado de fora. Então comeremos e beberemos e cantaremos – e nesta parte Alice estava sendo sincera, ela podia muito bem comer e gastar uns pontos de sangue para fazer a comida chegar até a saída para fazer parte do movimento como todos os outros – e a imprensa estará lá para nos filmar. E comeremos mais, até que o milagre aconteça e nossos intestinos comecem a funcionar. Então, cada um de nós, um a um, ou vários de uma vez, defecaremos, em jornais ou no que estiver disponível e passaremos os nossos excrementos para os que estiverem do lado de fora. Estes por sua vez, começarão o trabalho de decoração da Torre, a fachada embaixo. Olharemos a rua através de nossa obra.

 Continuaremos a comer e a esperar que os nossos intestinos funcionem – também podemos levar algum excremento conosco, só pra fazer volume, ninguém vai reparar na quantidade, o que importa é o simbolismo do ato. É claro que ***Shaw lavará a fachada depois, ninguém está dizendo que ele não vai. É claro que muitos de nós seremos presos. Então, alguém acha que a liberdade é impune? Talvez nos batam, torturem, prendam, caluniem. Mas não se enganem, nossas ações não serão esquecidas. As palavras ditas nunca são em vão. É conformismo achar que devemos nos calar porque seremos censurados pelo que dissermos. Não somos crianças que esperam que Edward Shaw nos aplauda por nossa coragem, ou que a sociedade nos dê uma medalha. O que faremos terá conseqüências. Somente os irresponsáveis não preveem as conseqüências de seus atos. Seremos punidos, mas a punição não apaga o ato em si. O que fizermos estará feito e o que dissermos estará dito.

Alice estendeu a mão para o CHE-valiê, queria cumprimentá-lo mais uma vez por sua iniciativa corajosa de se rebelar contra o que achava que estava errado.

- Vamos arregimentar, não somos os únicos que enxergam as coisas como são. Outros vão aparecer. Manterei contato por email. A-l-i-c-e-c.@gmail.com.
E olhando para a ****vampira loira:


- Você tem Facebook?


________________________________________
* Pra quem não conhece, Alice C. é personagem-narradora de vários enredos aqui do Literatices. É uma vampira recém transformada que luta para se adaptar a sua nova condição de não estar viva.

** CHÊ-valiê é um personagem deste trecho em específico, um ser humano muito distinto pelo visto, destes com ideologias e tudo. Gente fina.

*** Shaw é o vilão desta trama. Príncipe entre os vampiros, manipulador da mídia, da indústria da construção, da indústria química e tudo o mais que houvesse para ser dominado naquela região geográfica. Leia-se: tirano a ser combatido.

**** A vampira loira é um personagem super interessante, que porém, neste trecho é completamente negligenciado empatado de se desenvolver pelo discurso inflamado da Alice.

quinta-feira, 27 de junho de 2013

O corpo na caixa

O menino nasceu como nascem todos os meninos: miúdo e chorão. Razão para chorar jamais lhe faltou. O sol quente no cimento frio, o colchão rasgado e pinicante, a água quente derramada de cima do fogão.

Via seu pai muito pouco, figura negra sempre coberta pela fuligem do carvão. O garfo ameaçador de trabalhador mal pago.

O rosto de sua mãe era sempre um braseiro de gritos e sorrisos escondidos por detrás da fumaça do fogão de lenha. Ela também chorava nos dias em que o pai batia e xingava as vizinhas faladeiras.

O menino crescia e continuava miúdo, mas  estranhamente não chorava mais. Nem quando a professora beliscava por ele ser muito danado. Nem mesmo daquela vez em que um moleque da outra rua partiu sua cabeça com uma bodocada. A pedra bateu e o sangue escorreu,  o menino só fez desmaiar.

Depois aquele moleque teve o que mereceu. Comeu porrada até largar os dentes no mato. O que tinha dado naquele menino miúdo para se tornar tão bravo ninguém entendia. Ele quis se fazer homem cedo, carregar o garfo ameaçador no lugar de seu pai e arquear com o peso todo da lenha para não fustigar sua mãe. Ele não ia aceitar mais que lhe apedrejassem.

Xingava feito a mãe e batia em quem lhe desagradasse. Esmurrava, xingava, chutava. No trabalho ou na rua, até na bebedeira. Tinha um ódio mortal contra bêbados folgados ou falastrões.

Não se sabe quem, mas alguém deu cabo do menino briguento. Ele acabou miúdo dentro de uma caixa de papelão na beira de uma lagoa.

sábado, 15 de junho de 2013

Quem tem vintém?

Quando a barriga dói
a garganta chia
seu grito de ódio
seu lema de ordem
e as cabeças explodem,
os braços sacodem
seus socos no ar.

Quem tem vintém?
Quem tem vinte?
Vinde companheiros,
vambora lutar.

Cacetete desce
o pau sacode
sobre as costelas
que querem brigar.

Capacete verde
sangue-vermelho-da-morte
a fome roxa do povo a chorar.

Olha a mãe que cai
sobre o filho grogue
é mãe de um maio em junho esmaecido
brigador de ombros caídos
que esqueceu como é reivindicar.

E a platéia agradecida
aplaude o espetáculo que não pode parar
é show da vida (?)
do telespectador otário que não sabe brigar.

Só sabe chiar, só sabe chiar
barriga vazia, da fome roxa

Não sabe gritar, não sabe gritar
cabeça vazia de sonhos ocos

Capacete verde do sangue-vermelho-da-morte
E a triste mãe de maio em junho a chorar.

sexta-feira, 14 de junho de 2013

Quanto mais se reza...


Vamos ser francos? Rezar resolve? Se resolve, rezem aí por mim, que eu mesma já desisti. 

Os psicólogos que se rebolem em cima de seus tamboretes por lerem esta obviedade proverbial das minhas emoções em fuga: o único remédio deste mundo é estar fora dele. Eu me lembro muito bem que este era o lance dos românticos, e quer saber? Estavam certíssimos: com este mundo, a solução é outro. Outro, outro mundo, entende? É por isso que religião faz tanto sucesso. Quer coisa mais óbvia do que constatar que o mundo é uma droga, e a solução é fugirmos?!

Agora, não me perguntem se alguém virá nos buscar, eu não ando pondo banca de missionária ou coisa e tal. Aliás, se me perguntassem, eu arriscaria dizer que ninguém vem nos buscar, no máximo, vejam bem, no máximo... Já tem outra raça pro nosso lugar. É claro! Por que outra razão as profecias religiosas nos ameaçam com o fim deste mundo, a não ser como aviso prévio de que Deus está criando coisa melhor para chamar de sua "Criação". 

E podemos culpar a Deus por isso? Eu não me atrevo! Ele está é muito do certo. Neste mundo, em que ninguém mais vale uma pipoca, em que todos querem só garantir o seu, em que vagabundo veste beca de doutor e manda dar surra em operário, em que todos acham que estão certos e ninguém assume que está errado. É difícil advogar a nosso favor, humanos irmãos meus, é difícil.

O mundo em que vivemos anda de tal forma corroído, que parece até o mesmo do qual os antigos reclamavam, e Deus fez o favor de afogar no dilúvio. E aí, cadê o dilúvio novo? Está demorando.

Pode ser, repito, pode ser, que esta minha sede diluviana venha do fato que eu venha lidando com filhos da puta demais ultimamente. Mas se até Jó se lamentou, quem sou eu para não me lamentar? 

Que venham os fins, pois estes meios já me cansaram demais.

terça-feira, 11 de junho de 2013

Filosofares....

Vivemos em tal estado de paranoia internáutica, que o sujeito acha que se você tiver uma página na internet é porque você existe mesmo. Pode?

O ser humano não se resolveu ainda nem quanto ao fato se nós existimos ou não. Sério. Você existe? Tem certeza? Pensa outra vez. Ah! Se você duvida é porque você existe? Rapaz, e se você estiver programado pra pensar assim? O Descartes nem tinha computador, como é que ele podia ter tanta certeza que existia? Agora o mais louco: se o Descartes existia, e morreu, ele existe ainda ou deixou de existir?

Eu sei que ele tá morto, mas a memória dele está aí. Ele conta. Ele faz diferença. O Descartes faz mais diferença na nossa vida do que o vizinho da quarta casa depois da nossa. A gente pelo menos sabe o nome do vizinho...

Mas, voltando ao cara que acha que só existe quem tem site na internet, eu pergunto: Vale ter blogue? Brincadeira.

O sujeito deve ser dessas pessoas que aprendeu a usar o PC ontem, e pensam que de fato atrás de cada nick name existe um CPF. Mal sabe ele que metade da população online é um chinês só, mas com personalidade múltipla. Mal sabe ele que todo mundo na rede vira outro, e se multiplica feito vírus, pior do que o agente Smith de Matrix.

Esse sujeito deve acreditar mesmo que só dão golpes as pessoas que não tem site na internet. Eu vou fundar uma igreja pela internet, e ver se ainda arrebanho algum trouxa... ou se todos os que existem já acharam seus pastores.

Agora me deem licença, eu vou ali testar minha existência num joguinho flash.

terça-feira, 14 de maio de 2013

o poetar da poetisa

Não sou poeta
Não quero ser poeta
Eu sou prosa, sou marcha
Sou fila, sou baia
Eu sou, no máximo, com ressalvas
poetisa.

Ainda que eu fosse A poetisa
eu não seria cantora
nem cultora
nem coreógrafa de fantasias sexuais
nem jardineira de flores que não dessem frutos
nem musa amorosa

Se eu fosse poetisa
meu ofício seria poetar
não ser musa.

Se eu fosse poetisa
queria ser conhecida como
A maldita
A boca do inferno
A inconveniente
Vate da discórdia
Vate dos diabos
Profeta da maldade
Língua de duas pontas
Língua de navalha
Voz do fim do mundo
Voz do caos
Amazona da destruição
Égua sem arreio
Cão sem dono
Anjo da perdição
Mão da Justiça
Mão do Carrasco
Corda da forca
Cobra Cascavel
Cobra patrona
Cobra do chocalho
Arco da vingança
Luva da execução...

e se assim não for, não serei eu poetisa
preferirei continuar professora de últimas letras
corrigidora de redações mal feitas
lambe tinta sem importância
e somente assim serei eu poetisa

venha o ódio
venha o rancor
venham as pancadas
matem a poetisa
crucifiquem!

mas o meu canto, o meu verso, o meu lamento, a minha lamúria, o meu dizer de maldição, o meu conjúrio, a minha confissão ao pé do cadafalso, as minhas últimas palavras, os meus últimos suspiros, neles, com eles, eu juro, eu vos destruirei.... com a verdade do meu coração.

terça-feira, 7 de maio de 2013

Justiça e injustiça




É injusto. uma boa vida se extinguir enquanto uma vida inútil perdura. É injusto, os mais capazes serem desperdiçados enquanto os incapazes entulham. É injusta a dor, se não  compartilhada. É injusto o prazer, se não compartilhado.

E o justo? Nada é justo. Não é justo o olho por olho, não é justo dar a outra face. Não é justo perfumar o machado que nos fere.

A justiça em si é injusta.
Há dor dor e dor e o fim. O resto é eufemismo, ou pior, otimismo.

Pessimismo não há, pessimismo é expectativa. E as constatações? Contra fatos há argumentos? Contra fatos há utopia e ignorância, e, quem sabe, fé.
Mas, fé? É possível a fé? Ainda a fé? Somente a fé?

A fé no filho que se esquece de chorar a dor do pai.
A fé na mãe que se esquece do filho.
A fé nos amigos que só aparecem para se aproveitar.
A fé no silêncio entre os amantes.
A fé na saúde que se esvaiu.

Confiança talvez, mal se sabe em quê; infundada, desconfio.
Confiança em palavras, numa época em que elas perderam o valor.
Confiança em gestos sabidamente fingidos.
Confiança em valores publicamente abandonados.

Perseverança. Não sei. Teimosia, provavelmente.
Dor, sem dúvida. Dor, dor e dor. Pior do que a dor que o Tom Zé cantou.
Muito além do pêndulo de Schopenhauer.

E pior do que a dor, frias constatações.
De que o mundo é o melhor possível e o mundo vai às mil maravilhas? Meu nome acaso é Cândido? A partir de hoje, meu nome é Voltaire. Quem me dera ser chamada Nero.

Chamam-me trágica? Acaso me tomam por cômica? Eu tenho cara de mocinha de comédias românticas? As minhas comédias são, em extrapolação, gregas.

E a justiça meus caros, pelo que me consta, e já foi constatado por Platão desde os idos de mil anos antes de Cristo (pausa, sem drama)... a Justiça, só é possível numa cidade onde não haja luxos, aos moldes de Esparta. Os precavidos não devem adentrar à Cidade. Os muros de Jerusalém ainda lamentam, porque são tolos, seus filhos espetados em lanças.

Fujamos das imagens.

Consolemos as viúvas, amparemos os órfãos. Evitemos as manchetes trágicas. Devemos todos rir das piadas tolas e chorar somente nas cenas dramáticas. Não nos revoltemos jamais.

Pulai os cadáveres que encontrares pelo caminho, conformai-vos com vossa pobreza, não vos vinguei de seus inimigos, deixeis que os ímpios cuspam-lhe na cara, comprem sem pagar, fodam com vossas filhas e esposas, coloquem-lhes chifres e incendeiem vossos campos. Pois a justiça virá, meus mansos cordeiros, ela virá, limpará os regatos, partirá os mares, ressuscitará os peixes, pescará os lobos, escalará os montes, cuspirá pragas sobre os ímpios.... tudo isso virá, não sei quando, nem onde, nem sei se virá mesmo, mas NÃO NOS REVOLTEMOS JAMAIS.

Sentem-se por aí. Fiquem calados. E não murmurem, pois isto muito me irritará. Chorem, se lhes servir de consolo.

Amém. Amém.

domingo, 7 de abril de 2013

Genealogia

Eu sou filha de Zenilda
que é filha de Maria,
que é filha de Almerinda
que não soube de quem é.

Nessa sina de enzicas
Das três só uma foi rica
Até casar com um bode
que cheirava rapé.

Só maridos,
Almerinda enterrou um,
Maria enterrou dois,
Zenilda enterrou três.

De filhos foram mais covas,
que a fome é muita,
a água é pouca,
a terra é dos outros,
o dinheiro é dos homens.

Mas a Graça, essa é de Deus.

Miro-me em seus espelhos
de escassez e precisão,
por isso não fio a homem,
não empresto a mulher,
não crio filho dos outros,
Toco a vida como Deus quer.

Quando quero dar a entender aos burros
eu bato na cangaia, e se meu cavalo cansa
eu o deixo descansar.

Do meu homem eu ando atrás,
pois no meu sistema de frete,
a carga vai amarrada na frente,
pra detrás eu ditar o norte.

Sou assim e não me aprumo
Não ando em estrada sem rumo
Eu olho onde amarro meu jegue,
pra depois não me arreliar.

Pois sou filha de Zenilda de Maria de Almerinda
Não aceito nome de linda, nem de flor, nem de cheiro
Faço as contas e mando às favas,
Amarro as minhas trouxas e pego a estrada,
Sou mulher pra ver o mundo inteiro.


terça-feira, 2 de abril de 2013

A busca pela verdade

Seria essa a nossa questão fundamental? A verdade? Ela existe?

Eu não sei. Mas possuo a minha verdade pessoal, e faço questão de alterá-la um pouco todos os dias para garantir que ninguém irá copiar a minha fórmula de verdade.

A relatividade é tudo, eu acho, apesar de uma afirmação tão conclusiva não condizer com a premissa. O certo é que ninguém se conhece o bastante ou conhece a qualquer um o bastante para afirmar categoricamente que algo seja verdade.

Uns meses atrás alguém me perguntou como eu mantinha o meu ânimo. Aí alguém que me conhece pára e pensa, "a Ana, ânimo, de onde este louco tirou essa pergunta sobre a pessoa mais sem ânimo que há". De fato, de fato, eu sou muitas coisas que não combinam com uma pessoa cheia de ânimo. Eu sou pessimista, preguiçosa, omissa, procrastinadora, cética e DESANIMADA. Se eu fosse um aparelho de TV, estaria sempre em stand by. Sério. O que há em mim que simula ânimo é a minha teimosia, que eu prefiro chamar de lógica irredutível. A minha lógica é tão irredutível que somente a observação minuciosa e completa dos argumentos em contrário, quando não dos fatos resultantes em si, pode me levar a mudar de ideia.

E eu mudo de ideia, afinal, a verdade é relativa não porque decidiu ser relativa a tudo, ela é relativa para melhor se adaptar à marcha dos tempos. E aquela pessoa que me perguntou como eu mantenho meu ânimo, queria saber como eu me mantinha dedicada num emprego cujo público é desatento, relapso e eternamente medíocre.

Eu respondi, é lógico, a mais pura verdade. Eu sigo tentando por raiva. Raiva de desistir, raiva de me deixar desmentir. Raiva porque há quem pense diferente de mim, porque existe um pouco de verdade que precisa ser transmitida e eu estou neste mundo para isso. Resquícios do meu espírito catequético, talvez, ou não, afinal eu estou hoje mais para anticristo do que o contrário.

Por segurança, porém, eu ressalvo, a raiva não é boa conselheira, apesar de ser excelente combustível para a ação. Ela dá adrenalina, não mede consequências. É motivadora, mas desmancha no ar e quase sempre deixa resquícios dolorosos nos músculos da alta carga de stress.

O ódio é veneno para a alma, diriam. Destes venenos que as pessoas compram para usar homeopaticamente. O que eu apontaria como desabono da raiva e por consequência como nocivo à relatividade da verdade é a sua faceta peculiar de procurar certezas absolutas para se posicionar atrás delas. A raiva é uma reação muito simples, sem nuances, sem sombras ou semitons de cinza. Portanto, é uma má companheira no caminho que busca pela verdade.

Ainda assim a raiva é o meu estimulante preferido.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

A cidade onde não se morria só


A cidade era pequena ao ponto de velório virar festa.

Quem morria ganhava seu dia de celebridade, pobre ou rico. Para preservar a verdade, pobres ou ricos iam parar no mesmo cemitério superlotado. Covas por cima de covas, carneiros construídos com seis ou sete andares para fazer caber no mesmo metro quadrado a família inteira. Sete palmos ali era luxo ao qual nem o prefeito se daria. A diferença entre as classes não se via, só o coveiro sabia que os ossos desenterrados e que se perdiam pelas barrancas do rio eram os dos pobres. A cidade era pequena demais para mandar emparedar os restos, ademais, em qual parede?

Ninguém estranhava, o povo fazer velórios tão bonitos, porém sem nunca inaugurar um cemitério novo, onde não fosse preciso pisar nas covas para enxergar os parentes serem içados ao último descanso. Devia ser porque quase ninguém visitava o campo santo, a não ser em dia de muito lamento, quando não se repara em detalhes. Ou porque inauguração de cemitério não rende votos. Quem morre acaba, os que vivem esquecem.

Por vida, os familiares dos defuntos pediam o caixão ao prefeito. E tinha que ser coisa lustrosa, de luxo, com coroa de flor e aresta dourada. A municipalidade era tão zelosa de seus finados que quem morria em outro estado era mandado buscar. Estou para dizer que ali gastavam mais com os mortos do que com os vivos. Dizer que o prefeito tinha medo de perder os votos da família enlutada, isso eu não digo. 

Havia todo um ritual fúnebre que a modernidade não estragava. Registrada a morte por um dos médicos do hospital ou pelo delegado, começavam os preparativos. Alguém da funerária, a de conhecimento da família, vinha para anotar o nome dos familiares do ido, escolher música, enfeitar a casa. Um carro de som rodava pelas ruas anunciando o nome do falecido, seus familiares e o endereço onde se podia ir dele despedir. Sempre aparecia alguém da família para desenhar em cartolina umas frases de adeus, colar a foto do morto em momento qualquer. As vizinhas e tias velhas vinham fazer chá, café, biscoito, comprar bolacha e algum homem da casa lembrava-se de comprar pinga da boa, batizada de preferência, além de cortar a lenha.

A lenha era para acender na frente da casa. A dirigente da capela emprestava os bancos da igreja para a família para quem fosse passar a madrugada, e isso muita gente fazia, sentavam-se ao redor da fogueira e dividiam o tempo da vigília entre falar do morto, tomar chá e café e mastigar. Identificava-se uma família em luto pela quarteirão fechado por cavaletes e a fogueira ardendo. E claro, sempre havia uma multidão na porta, mesmo quem não conhecia ninguém da família ia, porque se tratava de um acontecimento importante.

Eram umas conversas longas ao pé do fogo, de esmiuçar a vida do falecido desde menino. A curiosidade da cidade quase toda desfilava pela sala onde se punha o caixão, morreu de quê, do que viverá a viúva, e os filhos, quantas concubinas teve, quantos bastardos. Um a um contavam suas passagens com o morto, brigas, bebedeiras. Das mulheres, indagava-se logo sobre os namoros, sobre os bordados, se era boa filha, irmã, esposa. Nas famílias mais católicas as beatas tiravam duas ou três horas para rezar o rosário, e entre as dezenas de ave-marias cantava-se. Era lindo e triste.




O ápice da celebração chegava quando a funerária vinha buscar o caixão para levá-lo ao cemitério. Era o momento em que todos sairiam de seus lugares e se apertariam pelas ruas estreitas para acompanhar o cortejo nos dois e até três quilômetros que podiam separar a casa do cova. Era a hora da mulher ou da mãe do defunto chorar mais alto, com o coro das irmãs, das tias, das primas. Se o morto ou a morta era jovem, juntavam-se ao coro os colegas da escola, da bola, da academia.

Saía o cortejo, apinhado de gente, por onde passava fazia abrir portas e janelas para vê-lo ir. As casas comerciais baixavam as portas em sinal de respeito. O trânsito parava, todos paravam. À medida que o caixão se aproximava do cemitério, o séquito diminuía. Esse momento se reservava à família e aos amigos mais chegados, e também muita gente não gosta de pisar em cova de cemitério.

O mesmo homem cavava todas as covas da cidade há trinta anos. Sempre tomava meio litro de cachaça antes de qualquer enterro. Pra não amolecer. O povo tinha o costume de lavar os pés e as mãos na saída do cemitério e isso o deixava puto, porque o cemitério ficava numa ladeira, a água da entrada escorria até o muro do fundo e ia fofando ainda mais a terra escavada.

Depois dos enterros a cidade ficava ainda mais parada, como se o pouco  movimento do costume fosse cansativo. Era um lugar no qual não se morria sem ninguém para lhe por uma vela na mão.

domingo, 10 de fevereiro de 2013

Carnaval


A picape velha saltava e rangia na estrada de terra. A poeira do cascalho da estrada se erguia no ar e formava uma neblina fina e amarelada que obrigava os automóveis a acenderem os faróis às três da tarde. O movimento na estrada alcançava picos depois do meio dia e depois das dezoito, quando a mão dupla cheia de ladeiras e curvas e curvas em ladeiras se tornava uma arapuca pronta para disparar contra os foliões alcoolizados. Placas amarelas indicavam a direção da próxima curva, fincadas sobre o mato recém roçado das margens da estrada.

Naquele ano a vegetação estava seca e cinza, quase estorricada, sem nenhum açude para amenizar a paisagem de caatinga e seca e cercas de arame farpado. A madeira mais grossa que se via por ali era a dos mourões das cercas, enegrecidos pelas queimadas anuais, herança de um passado de mata virgem há muito devastada.

Do alto avistaram a pequena vila, não mais do que dez casas sobreviventes, filhas bastardas de um passado esquecido de caminho de tropas, enfeitadas somente por uma velha igreja em ruínas, teimosa por manter-se sobre suas bases de tijolos crus. Descendo a ladeira, podia se notar uma ou outra construção nova: os remediados da sede do município vinham erguer suas casas de veraneio em desordem, obviamente invadindo a área de preservação das margens do rio.

O rio de águas barrentas era só uma faixa rasa de vinte metros de largura, os moradores atravessavam com água nas canelas nos locais certos. Há um par de anos ninguém morria afogado dentro de um dos traiçoeiros poços estreitos e profundos, mais ou menos conhecidos de todos os banhistas experientes, teimosamente ignorados por crianças e adolescentes inconsequentes. Aquele ano novamente o rio não engoliu ninguém naquele ponto, pois o poder público contratara salva-vidas e demarcara as áreas perigosas com bandeirolas. O rio passaria fome, não fossem os bêbados que o faziam de cama e os traficantes que nele desovavam seus desafetos.

Teríamos somente mais um ano de gritaria e festa, de turistas seminus e completamente embriagados bebendo mais cerveja e uivando para os dançarinos obscenos de cima do palco, senhoras com as coxas de fora comprando quinquilharias e guloseimas nas barraquinhas, moças e rapazes entrando e saindo escondidos dos arvoredos à beira d’água, crianças correndo com sorvetes e baldes de areia entre as piscinas.

Parecia mesmo que o carnaval daquele ano não teria nenhuma novidade. Mas um dos caminhões que saíam com a carroceria apinhada de homens e mulheres bêbados e crianças de colo e senhoras de chapéu de palha não encontrou o fim da estrada. Ele correu como louco saltando pedras e aterrissando derrapante sobre as camas de areia fina, e num desses saltos se viu em frente a um ônibus de faróis sonolentos que subia a ladeira pela qual o caminhão queria descer. Desembestado, o caminhão não teve freios para parar, e tentando evitar o impacto fatal, não desviou por centímetros, encabeçando com a outro gigante metálico e arremessando a todos os que nele iam dependurados contra as cercas e os espinhos que naquele sítio faziam morada.

Então, viu-se um festival de corpos voadores, e pousos forçados que deixavam em seus rastros peles e carnes ensanguentados. Teve quem saiu sem arranhão e quem quebrou fêmur, bacia, rótula, teve quem ficou sem cara, sem roupa, sem bunda, sem tampo. O caminhão dobrou-se todo sobre o próprio eixo metálico e mais tarde deu testemunho de que a coisa podia ter sido muito pior. E o ônibus quietou-se calado, aliviado por ter levado só esbarrão e não ter ferido nenhum de seus três ocupantes. A estrada virou uma folia de luzes vermelhas e sirenes assustadas, de uniformes verdes e brancos indo e vindo. Formaram-se duas comitivas, uma em cada direção, donde os foliões que não participaram do acidente assistiam à muvuca de camarote, meio que irritados e cansados pela espera prolongada. Aquela ladeira nunca se tinha visto tão cheia de gente e de cores, irrigada por sangue jovem e marcada por tantos pés confusos.

No dia seguinte viria a quarta de Cinzas.

sábado, 26 de janeiro de 2013

Solidariedade


Pra que ajudar os outros? Eu estava ajudando aquele rapaz pela razão mais deslavada do mundo, por educação. Não porque eu fosse uma pessoa muito educada, era por condicionamento puro. Fui criada ouvindo dizer que devemos ajudar os outros, não só para alimentar nosso ego altruísta, mas porque negar auxílio ao próximo vale uns 100 pontos negativos na passagem para o Céu. Entende? Não basta ser bom e ficar na sua para alcançar a benção de Deus, você precisa colocar a mão na massa, cruzar os braços é o mesmo que ofender o santíssimo. Naquela altura da minha vida, eu não cria mais nessas patacoadas de Céu; no inferno eu acreditava um pouco, de qualquer forma, eu já tinha levado muitas bordoadas pela testa para achar que existe retribuição para as nossas bondades nessa vida, porém, o contrário, neste eu não podia deixar de crer jamais. Quer dizer, ser bom não tem recompensa, mas ser um miserável filho da mãe e foder com os outros de propósito, ah.... Isso não é coisa de passar impune. Nessa vida tudo tem troco. 

Como eu ia dizendo, tentar ajudar aquele rapaz fazia parte do que eu fui, era um ato automático, sem muito raciocínio, eu não estava de fato preocupada com ele.
Ajudá-lo era como me ajudar. Não havia nenhum mérito nesse meu ato. Será que foi isso que quiseram dizer quando mandou escreverem que o que a mão direita faz a esquerda não precisa saber? Foi como um "abaixa a bola que tu só faz o que te convém"?

Eu tava ajudando de má vontade, por descarrego de consciência, porque ajudar era mais fácil do que explicar o porquê de não ajudar. Mas se pudesse, não ajudava. Entende?

O peso de um nome


Eu não sabia mesmo não, de onde tinha vindo esse nome que eu tenho. Era só o meu nome, o primeiro nome ainda, todo mundo só dizia ele errado, eu nem ligava de corrigir. Nem sei por que me puseram esse nome, aliás, nem sei por que me puseram nesse mundo. Antigamente, os pais tinham uns quinze meninos, nem dava pra lembrar os nomes de todos. Deve ser por isso que se botava tanto apelido. O apelido tem a cara do dono, o nome nem sempre.

Mas, por que foi mesmo que me puseram no mundo? Deve ter sido por nada; pior, foi por acidente. Também, numa droga de mundo desses, para alguém decidir de sã consciência fazer um filho tem de ser muito pancada. Todo mundo nasce por acidente, puro conformismo da genitora. Minha mãe me dizia: “Minina, te pari por pena de te tirar”. Ela dizia na hora da raiva, devia ser verdade. O nome era isso, o desprezo de minha mãe em não me dar um nome melhor.