quinta-feira, 28 de maio de 2009

Visão cega


Muito tempo em solidão torna a pessoa mais e mais solitária, porque em seu caso, a solidão era uma forma de manter intactas as suas lembranças e seus hábitos, afastar-se de contato humano verdadeiro formava uma litania em sua própria homenagem, um modo de sacralizar-se, evitar que outras pessoas conspurcassem o seu íntimo com a tolice vã das gentes.

Explique-se que não foi uma figura saltada de páginas oitocentistas, não se refugiou nos campos bucólicos, não guardou castidade ou cultivou a tuberculose, não se envenenou com a bílis negra dos folhetins ultra românticos, tampouco suspirou por encontrar uma alma gêmea. Embebeu-se da solidão moderna, sentindo-se só em meio a multidões, falando muito sem jamais dizer nada de verdadeiro, tratando com os outros sempre assuntos que não lhe interessavam mais do que a cor dos cadarços de um João-ninguém.

Deixou crescer os cabelos até a metade das costas e os tratava com exageros cosméticos, ouvia dia e noite música alta de batidas monótonas e metálicas, que nada comunicava ao cérebro, mas fazia vibrar seu corpo. Intoxicava-se com bebidas coloridas, estrangeiras, para negar que se satisfaria com o álcool nacional. Bebia apenas para provar ao mundo que era capaz de beber, pois não sentia nenhum prazer com isso, a bebida em lugar de turvar os sentidos, aguçava-os, fazendo com que prestasse maior atenção na venialidade das pessoas ao seu redor, desprezando-as com mais força.

Mais crescia o seu desprezo pelos outros, maior se tornava forte a sua autoconfiança. Ansiava viver em um mundo em que não houvesse ninguém além de si. Não um mundo povoados por réplicas, mas um mundo de uma pessoa só. Com o sol nascendo e se pondo para si, os rios correndo por si, os pássaros cantando somente para os seus ouvidos, a vida brotando e perecendo em sua honra.

Perdoava, então, os outros viventes por suas existências incômodas, e dignava-se a sentir piedade deles. Afinal, um mundo somente seu era exigir demais.

E naquela manhã se deparou com a inconveniência de dividir o mundo com outras pessoas: precisaria pedir ajuda para realizar uma tarefa. A peça do carrossel do parque era demasiado pesada e grande para ser movida por uma única pessoa. O uso de polias e cordas não bastaria, pois o tempo demandado para erguer um apoio seria desperdiçar tempo e material. Faltava-lhe, inclusive, a chave correta para os parafusos que prendiam a peça ao todo do brinquedo. Outra pessoa seria indispensável. E a pessoa mais indicada seria o homem de rosto desfigurado.

Existiam alguns motivos para que detestasse a idéia de pedir auxílio ao outro. Poderia alegar que seu povo foi acusado injustamente de bárbaro por interesse estrangeiros em usurpar a terra de seus antepassados (mais ou menos o que houve na América, gente inculta e sem alma não precisa das riquezas da terra, vai usar como? Só para alimentar seus zilhões de filhos?); poderia ainda dizer que a gente da qual o desfigurado descendia dominavam o poder, criaram e mantiveram leis que desprivilegiaram e boicotaram a população nativa em prol dos colonizadores, promovendo um estado de miséria e atraso que até hoje mostra suas marcas nos índices de desenvolvimento humano destes povos. É claro, para a lógica dos colonizadores esse devia ser o curso natural das coisas, subjugar os supersticiosos e atrasados em benefício dos desenvolvidos e evoluídos, da nação berço de filósofos, cientistas, artistas e personalidades que marcaram toda a história da humanidade. Que fiasco! O mundo inteiro baixando a cabeça para o gigante decadente. Nosso povo é tão desorganizado, tão bárbaro, tão inculto, que somos dos poucos povos no mundo capazes de resistir politicamente ao imperialismo que se arrasta e atravessa o finado século XX, e o que os civilizados fazem com nossos emissários, representantes dos ideais libertários? Encarceram como presos comuns, negam o privilégio de presos políticos, acusam de terrorismo. Assassinatos em off, ocupação militar, direitos políticos cerceados, é esta a democracia pela qual o mundo se bate. Então partimos para o terrorismo político e nos chamam monstros. Monstros? Nosso terror pode ter embrulhado muitos estômagos sensíveis, abismado muitas associações cristãs de moços e moças e todo este choque que se abate sobre as pessoas quando enxergam até onde é capaz de ir a raça humana. Mas acima de tudo, nosso terror serviu para nos fazer ouvidos, nos tornou fortes. A gratuidade do terror, esta sim é patética. Nosso terror foi libertário.

Mas nada disso contava, logicamente não, pelo contrário. Porque por mais que o destino dos povos influísse no julgamento entre os cidadãos, acima disso, a verdadeira razão para sentir repulsa pelo desfigurado era muito mais simples. Detestava a idéia de precisar dele para algo, porque sentia-se superior a ele. Despertava-lhe pena por sua condição humilde e aquela circunstância infeliz obrigava-lhe a pedir auxílio ao homem.

Entrou no quarto de piso molhado com receio, chamara através da porta pelo lado de fora sem resultados. Obrigou-se a entrar, a encarar a miséria do outro enrolado em uma coberta vulgar que pouco tapava o frio, e obrigou-se a acordá-lo com uma sacudidela.

O outro sobressaltou-se, e talvez levado pela invasão inopinada, ou pela reciprocidade por sua inimizade e asco, avançou em fúria cega. Mas suas fúrias possuíam uma visão perfeita, esquivou-se do arremate por milímetros e despregou um chute nas costas que o tolo deixou desprevenidas. O desfigurado tombou dentro da poça de água e os dois olhares se encontraram. Um espectador atento veria piedade e pesar nos olhos metálicos da criatura solitária. O que outro enxergaria dependeria de sua mente perturbada.

domingo, 24 de maio de 2009

Natural


- “Já fui uma flor perfumada, exalei todo o perfume do meu viço, hoje sou apenas a sombra do que fui. Minha beleza foi condensada em quilogramas de tecido adiposo acumuladas em pontos nada estratégicos do meu corpo. A idade levou tudo o que eu mais amava da minha existência, inclusive as pessoas que eu amava. Meus filhos (ingratos!) não fizeram mais do que alargar em quarenta centímetros os meus quadris. Meu marido, trocou-me pela primeira ninfeta que abriu as pernas para ele.”

Adorava ler trechos de seus diários para os seus alunos de literatura, para incentivá-los a criarem seus próprios diários. E para mostrar-lhes que nem tudo que se escreve de cunho emocional pode ser aceito como poético. A vida não pode ser poética, porque não é criação, ela simplesmente acontece em descontrole.

Fechou o caderno de anotações, abaixo os óculos para ver sem barreiras as caras pasmadas dos alunos do primeiro semestre. Eram na maioria garotinhas preguiçosas e rapazes afeminados, que achavam o supra-sumo da literatura os romances eróticos vendidos em bancas de jornais, ou as letras de roqueiros decadentes e suicidas. Cultuavam o lixo cult vendido pela mídia, para sentirem-se “cult”. Olhando para eles, preferia infinitamente os fãs de quadrinhos de terror, de filmes trash e música underground, conseguiam ser sinceros em suas preferências, não o preferiam isto ou aquilo para atender a alguma demanda comercial. Ser o único admirador de um artista decadente é saber exatamente do que gosta.

Soou o sinal para o fim da aula. Levantavam-se os alunos e voltavam para suas vidas. Voltava ela para sua vida também. Que vida? Um apartamento vazio. Arrumava os livros dentro da bolsa. Insistia em levar livros para sugerir que eles lessem e comprasse. Eram volumes inestimáveis, sem novas edições, que possuía desde os seus tempos de universitária. Diferentes dela os livros: a vida toda, deu a eles todos os cuidados para que se conservassem intactos, sem rabiscos, sem mofo, sem traças. Ela se deixara deformar, massacrar, massacrar. Quando chegou aos quarenta tentou recuperar o tempo perdido, usou cremes supostamente milagroso, pomadas, ungüentos, fez ginástica, dieta, mas o tempo não retrocedeu. Estava mais velha que os próprios livros. E sozinha.

Desceu as escadas do módulo de aulas, devagar, cuidadosamente. Falta de ar. Dor aguda na coxa direita. Nunca atendiam aos seus pedidos de só ensinar nas salas do térreo. De propósito, pensava ela, a jogavam para o último andar. “Imbecis. Daqui não me tirarão. Ensinar é a última coisa bela e útil que sou capaz de fazer, não vou me aposentar, quero morrer segurando um volume de Tzvetan Todorov, emborcar sobre o retroprojetor enquanto ele estiver exibindo as imagens das ruínas do Templo de Diana.”

Uma última passada na biblioteca para devolver alguns dvd’s. Petulância da bibliotecária recriminá-la pelo atraso. “Pensa que os seios pontudos e o traseiro durinho a fazem melhor do que eu. Piranha.” Na saída, avistou uma aluna dormindo sobre uma das mesas de leitura, sentada na cadeira, tronco reclinado sobre a mesa. Era quase hora de fechar e a moça num sono de morte. “A inútil da bibliotecária sequer dá-se ao trabalho de proibir que se durma no ambiente de leitura. Piranha preguiçosa.”

Reconhece a aluna de longe. A menina era um retrato seu aos 18 anos, fosse um homem e não uma mulher, diria que alguma aventura sua havia produzido aquele fruto perdido e agora encontrado. Esplêndida esta vantagem para as mulheres, o produto do útero é inalienável. Detestava a moça, uma ironia cruel da natureza trazer para perto de si uma lembrança tão incômoda de tudo o que ela jamais voltaria a ser.

O que ela estava fazendo naquela idade? Aquela altura da noite já estaria de pijamas para dormir obediente no horário regulado pela família. E a menina? Devia estar no mesmo caminho que o seu, dormindo sobre os livros de uma biblioteca.
Se aproximou para despertar a sonolenta, a silhueta valquírica trazia-lhe saudades de todos os sonhos que havia alimentado na época em que ainda podia tê-los. De repente uma imensa tristeza tomou conta de seus sentidos, uma vontade de ensinar a menina a não ser igual a ela, rogar que ela não seguisse os mesmos caminhos, se importasse mais consigo mesma, ficasse longe daquela entorpecente perigoso que era a aceitação muda do que nos impõem os ritos sociais.

Parou no meio do movimento. Estava ficando velha e piegas. Tão piegas que ainda entendia o significado desta palavra velha e piegas: PIEGAS. Mas acima de tudo, velha. Não acordaria a menina, já era o bastante olhar para ela. Seria insuportável saber que a moça possuía alguma semelhança a mais. Desviou os olhos, caminhou em frente.

As ruínas que o tempo lhe impôs instalaram-se lentamente, todos os dias mirou-se no espelho e sequer notou que estava envelhecendo, em sua cabeça não mudava nada. Só admitiu que estivesse velha e decadente quando ficou impossível ignorar o fato. Quando chegaram para lhe dizer que os absurdos que estavam acontecendo eram muito naturais naquela idade. Parafraseando um de seus escritores latino americanos preferido, ela respondeu ao médico “Essa minha idade que não é nada natural então.”

Arrastou sua pieguice e incômodos naturais para longe, onde não atrapalhassem as vistas do público.

(Imagem: A velha senhora, desenho de Tenini)