O telefone celular dava sinal de ocupado o tempo todo. Devia
estar na estrada, por isso fora de área. Também tinha o hábito de desligar o
celular durante as aulas, para não interromper os professores. Desistiu de
tentar. Ela retornaria a ligação quando estivesse disponível.
Era um dia de agosto, o vento fazia com que aquele dia quase
na primavera ficasse tão frio quanto um dos dias de junho, mas sem chuva. As
nuvens escuras no céu sinalizavam o mau tempo que se aproximava. Ao que parece,
a frente fria passaria por eles para ir se despejar em locais mais propícios a
precipitações climáticas. Ali chovia quase nunca, as chuvas sempre passavam direto,
com pressa.
A revoada de urubus ao norte combinava perfeitamente com o
cinza daquela manhã. Ao menos, os jardins da praça estavam sendo bem regados,
garantindo assim um verde revigorante para os seus olhos no caminho para o
trabalho. A quantidade de cães vadios rasgando sacolas de lixo, contudo,
denunciava o desleixo dos moradores do bairro para com a limpeza pública. O
vento soprava e todos os papéis daqueles malditos sacos colocados fora do
horário do recolhimento suspendiam-se sobre as cabeças dos passantes,
prendiam-se aos fios de eletricidade e sinalizavam terrenos com capins altos. No meio
daquele capinal da esquina, certa noite, havia erguido a saia dela às pressas,
pela primeira vez, com medo de serem vistos ou ouvidos pelos bêbados do bar de
seu tio.
Depois daquele dia ela foi sua sempre, onde quer que
escolhesse, não importava quão perigoso fosse. Mas assim que casaram tudo
mudou, ela decidiu fazer aquelas viagens estúpidas, todas as noites, sem ele. O
que havia para ser feito naquele fim de mundo sem ela? Vinha tentando
convencê-la de que em breve ganharia o bastante para pagar uma escola
particular para ela, sem sucesso, porém. Ela desejava ser independente, se
formar, ganhar tão bem quanto ele. Gostaria de vê-la contentar-se com aquilo
que já possuíam, não era muito, mas era o suficiente para ele. Esse vazio de
achar que não era o bastante para ela preenchia os pensamentos dele todo o
tempo. Às vezes, preferia ter escolhido outra para ser sua, uma mulher com a
cabeça menos cheia de caraminholas sobre independência, profissão, sonhos,
viagens. Por que havia escolhido aquela mulher preocupada em subir na vida, quando a maioria delas
contenta-se com roupas novas pela ocasião das festas?
Havia aquela de quadris muito largos, vivia dando mole para
ele, devia achá-lo muito interessante. Tinha 5 anos mais que a sua mulher,
jamais colocara os pés para fora da cidade. Não tinha cara de quem sonhava com
nada, mas jeito de quem põe as mãos onde precisa e se lhe pedem.
O dia passava lento demais para ele, sempre preocupado com o
que passava pela cabeça dela. Talvez ela não o quisesse mais em breve, porque
ele não tinha sonhos como os dela. E se depois de formada ela arrumasse um
emprego bom longe dali, em um lugar que não precisassem dos serviços dele? Não
desejava ser encosto dela, muito menos gigolô. Um homem precisa ser o provedor, indispensável. Ser casado por ser não faz durar casamento. A vida seguia, assim, cheia de
incertezas e medo de perdê-la.
O celular vibrou quase no final do expediente na loja. Era
ela. Atendeu com um sorriso. Do aparelho saltou uma voz masculina, perguntando
se ele a conhecia, qual era o parentesco e avisando que ela estava morta. Um
tiro, na beira da estrada, assalto. O policial que atendia a ocorrência usava o
celular da vítima para tentar localizar a família.
Era o fim de todas as dúvidas.
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