sexta-feira, 28 de maio de 2010

Fábulas de HaVaNa: Cachos de uvas

Fábulas de HaVaNa: Cachos de uvas

Última postagem do Blog que eu administro para a minha filha Havana.

Trabalhar com família, é claro, só podia dar problema. Tivemos uma briga feia na última semana porque eu me recusei a publicar (ou postar, como preferirem) uma história que ela inventou. O título era "O carneirinho", texto sem princípio, meio ou fim, onde ela apenas perdeu tempo com a descrição de uma família de carneiros saltadores em que um deles se torna músico. Não me agradou pela falta de cuidado dela em explicar quais conflitos poderiam ter havido para que o carneirinho saltador não realizasse o seu sonho de ser saltador como os outros e acabou músico, e em uma banda cheia de outros animais que nem haviam entrado na história.

A briga foi feia, ela esperneou pelo chão reclamando a sua liberdade de expressão e eu bati pé firme sobre os meus direitos de editora e mãe. Consequência da briga, esta nova história, a "Cachos de uva", ela preferiu ditar para a minha mãe, vó dela, que segundo ela, a neta, não altera nada do que ela escreve. Realmente, intriga-me como ela pode saber se eu altero ou não o que ela dita levando em conta que ela não sabe ler! Concluí que ela decora o que nos pede para escrever e pede repetidamente para que nós leiamos o que já passamos para o papel. É uma tirania total, sinto-me cerceada no meu direito de censora e representante editorial desta pessoinha.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Aparências

A consonância entre a aparência e a essência das pessoas não é obrigatória.

Há pessoas nas quais a real personalidade jamais transparece e há pessoas que demonstram exatamente o que são. Não posso classificar estas últimas como dignas de serem chamadas sinceras, são apenas incapazes de parecer um pouco melhores do que não podiam deixar de ser.

Existem ainda as distorções. Os outros tiram conclusões sobre nós que independem do que vêem ou ouvem. Baseiam estes julgamentos em circunstâncias e detalhes de suas próprias vidas. Enxergamos as outras pessoas através da nossa própria miopia.

domingo, 16 de maio de 2010

Humanas Criaturas


A criatura humana entrou em decadência dois minutos após a Criação. É penoso a ela reconhecer a descentralização do Universo, é penoso reconhecer como o umbigo não atrai para si os desvelos de toda a corte celestial.
A criatura humana crê em um Criador até se por sobre os dois pés e alcançar a fruta das ilusões. Ela nega a um deus inventado, remédio para todos os males, resposta para todas as perguntas, pão para todas as fomes. A criatura humana desconhece o seu papel no cosmos: rejeita a passagem do tempo, rejeita as adversidades da vida, rejeita a inevitável morte. Mas ela clama pelo deus rejeitado quando se aproxima a hora de agonia, porque as ilusões são vazias, disfarces para uma verdade inegável. Deus existe, não existe para servir aos caprichos da presunçosa criatura, existe para que tudo o mais possa existir.
O Criador não é um ser isolado, é a obra em si e tudo que dela faz parte. A criatura humana é parte da Criação, mas ela prefere abrir mão do seu papel para se acomodar. Deseja que o Universo se expanda sem ela, deseja o fim da violência, a solução para as guerras e para a fome, o fim da poluição, contanto que não seja necessário erguer-se um dedo para isso. A criatura humana é fútil, burra e preguiçosa. Joga sobre o seu deus inventado a responsabilidade de suas omissões e egoísmos. A criatura humana sonha com uma pós-vida sob a medida de seus egoísmos. A criatura humana aprende devagar, esquece rápido, desiste cedo, reclama muito.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Devir

Eu não sei dizer se o princípio da vida é o prazer ou a dor. Embora diga sem medo de errar que os seus primórdios antecedem muito a concepção biológica. Pela visão da Genética, somos o resultado dos cruzamentos cromossomáticos desde os nossos bisavôs, e segundo a conjunção de vários campos da pesquisa comportamental, somos um prolongamento inconsciente dos nossos pais.

Teoricamente sou partidária da influência do meio sobre o sujeito, contudo, obrigo-me a reconhecer que sou um exemplo contraditório a esta hipótese. Filha de uma família convencional, sem exageros de disciplina ou de liberalidade, em resumo, uma família absolutamente normal eu fiz escolhas que me puseram à margem do comum e previsível.

Sou filha das minhas escolhas, portanto, posso declarar: sou a única responsável pelo meu devir.

Príncipes


Julgam-se os belos Príncipes os primeiros “homens” do mundo,
Ao seu redor existe, pois, toda uma corte para dizer-lhes isto.
Nuvens de historiógrafos louvam-lhes os seus feitos,
A cúpula de seus generais grita-lhes  “Vivas!” e “Hurras”.
Caem assim, os Príncipes, no ridículo de se considerarem Absolutos.
No exílio de suas torres que quase tocam o Céu,
Impenetráveis à luz do Sol, se escondem do ódio de seus Súditos.





* Poema epígrafe de um personagem insurreito.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Nota da Comissão de Assuntos Indígenas-CAI/ABA sobre matéria da Veja

Nota da Comissão de Assuntos Indígenas-CAI/ABA sobre matéria da Veja

Mais um episódio em que a imprensa do nosso país se mostra tendenciosa e hostil aos direitos das classes menos privilegiadas. Mais um motivo para que busquemos informações em blogs e mídias independentes, ao invés de ficarmos dependendo de jornalistas pagos para embromar e distorcer.

sábado, 8 de maio de 2010

O envelope



Eu tinha uma carta para ser entregue, o destinatário estava bem explicitado no envelope, mas não havia remetente. Era o meu primeiro dia no ramo de entregas, queria mostrar serviço, todas as outras entregas completadas, só aquele envelope no fundo da bolsa. Estacionei em frente a um enorme terreno baldio, um único outdoor na frente anunciando uma obra próxima. Sem dúvida era aquele o endereço, mas não havia prédio ali, e o envelope indicava o número de um apartamento no oitavo andar. Comparei o edifício do envelope com o nome do outdoor. Iguais. Voltei para a central, aquele envio devia ser uma piada de mau gosto. Atônita assisti a meu supervisor empreender um violento escracho contra minha pessoa. Naquela firma de entregas não se admitiam falhas, voltasse eu todos os dias a procurar o endereço do mesmo envelope e registrar no relatório “endereço não encontrado”. Carimbo. Assinatura de um vizinho.
E assim foi, uma vez por semana eu voltava àquela rua e incomodava alguém da vizinhança para testemunhar que não havia ali naquele terreno um prédio tal, com tal número e tal andar. E semana a semana o edifício se erguia do chão, pululante de operários e prestadores de serviços, um monstro de concreto e pedra construído de baixo para cima. Completei oito anos de firma, ocupei o lugar do antigo supervisor, mas aquele compromisso eu não abandonava, o maldito envelope nem saía mais da minha bolsa. Finalmente concluíram a construção do edifício, lojas comerciais nos dois primeiros andares, escritórios do terceiro ao quinto, do sexto ao oitavo residências. Desta vez o elevador funcionava, fora sempre chato subir as escadas e passar entre os trabalhadores nos corredores sem acabamento para averiguar quando seria ocupado o fatídico oitavo andar, apto. 357.

Aquele seria o dia, era minha folga, mas e daí? Quando uma coisa te persegue a tanto tempo, detalhes pequenos deixam de ter importância. Toquei a campainha, uma mulher veio atender.
- A senhora é (...)?
- Sim, sou eu.
- Uma encomenda para a senhora. Assine aqui.
Estava tão curiosa, o que havia dentro do envelope? A mulher pareceu adivinhar, rasgou o envelope na minha frente e correu os olhos pelas linhas.
- É algo grave? – pergunta irresistível.
A mulher me olhou com o rosto espantado. E disse:
- Não é da sua conta.
Entregou a gorjeta e bateu a porta.

domingo, 2 de maio de 2010

Memórias de Renascer



Não me peça para lembrar do que eu já me esqueci, nem peça para que eu explique o que não sei explicar. Trata-se de uma história antiga, muito antes do meu nascimento. Naquela época as pessoas me olhavam e só viam a minha aparência, julgando que por dentro da casca houvesse apenas vácuo. De uma coisa estavam certas, o exterior não correspondia ao interior. Não posso culpá-las, eu própria não sabia. Hoje, enxergo com maior clareza  o quanto eu tentei poupar a todos da minha verdadeira essência. Eis aí o meu pecado.

Vivi protegendo a mim mesma das conseqüências dos meus atos e dos meus impulsos, me escondendo de um mundo propenso a me repudiar. Ser uma casca vazia é mais aceitável do que possuir uma alma sem casca. Atravessamos uma época em que o invólucro, a casca, o recipiente, são mais valorizados do que seus conteúdos. A forma é encarada materialmente, sendo ignorado o conceito representado. A forma é falha, uma imperfeição mensurável e óbvia. A forma nos oprime com sua rigidez métrica, com seus padrões certo/errado estabelecidos. Forma é matéria, matéria é perecível. Contudo, é da matéria que dependemos para depreender a essência. A maioria de nós, pelo menos. Há os que acreditem ser capazes de tocar a essência sem passar pela forma. É possível um homem possuir uma alma sem corpo? É possível um corpo sobreviver sem a alma? As duas esferas do nosso ser são indissociáveis; transformando ou degenerando uma delas, a outra reage.

A reação precisa ser desencadeada por um princípio reativo poderoso, encontrar matéria propícia ao processo de transição, resistente às fissuras e maleável às alterações de pressão e densidade. O meu princípio reativo foi o fogo; a matéria de transformação, meu corpo. A reação nós descobriremos depois.
Não sinto a necessidade de explicar novamente o que você deduz sozinho: sobrevivi à transformação. Os meios materiais, você também já os viu: foram a clemência de uns, o interesse de outros. Poupe-me de repetir os detalhes, por tediosos que me parecem. No entanto, não o proíbo de preencher todas as lacunas que ficaram com as cores da tua imaginação e as perversidades da tua alma. Imagine a agonia, a dor, os gritos, o grotesco dos movimentos e a podridão dos resultados. A beleza da cena dependerá apenas da tua capacidade imaginativa e sairá tudo ao teu gosto. Exercita este dom divino que é a imaginação e não abre mão dele pela limitação das sentenças. Faça assim, e eu garanto, você chegará além.



Imagem: Criança geopolítica observando o nascimento do homem novo, Salvador Dalí.