terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Ser menina

Menina
Capítulo 1

Ser Menina

           Nascera mulher e por obrigação devia portar-se como uma dama. Ser dama, na verdade, não lhe entrava na cabeça. Primeiro, porque "dama" é uma palavra medieval utilizada até hoje, século XXI, totalmente descontextualizada. Mas o fora de contexto não ia por sua mente infantil, ser dama era o mesmo que ser menina boazinha.  Quase ser princesa; gostaria de ser princesa, mas era pobre.       
         Era pequena a  ponto de brincar de balanço, porém lhe proibiam usar roupa curta ou mostrar a barriga. Era proibido ainda brincar no meio dos meninos. Tinha tantos primos, todos da sua idade, todos com brinquedos novos e novidadeiros, sabendo coisas diferentes, mas não podia brincar com eles. 

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

O doce e o amargo

Essas pessoas que pretendem corrigir o mundo com mordacidade e corrosão, tenho delas pena. São pequenas, porém se acham grandes detentoras da verdade. "Dou-lhes chances, dizem elas, mas não as aproveitam", são quase deusas, estes seres supremos que dão chances para que não sejam aproveitadas. Convencem com ameaças, ajudam com admoestações, ensinam  com réguas batendo pelas paredes; recebem sem agradecer, trabalham como se fizessem favor. E estão sempre certas, é lógico. Errados estão os outros, não elas. Tudo dá errado, mas não por interferência delas, é claro, está claro que elas nunca erram, apesar de nunca mudarem, de repetirem as mesmas ladainhas, trilharem as mesmas brechas, mastigarem as mesmas fórmulas. Não são seus métodos que necessitam de renovação e estratégia, mas é o mundo todo que precisa adequar-se aos seus métodos.

É como no conto de fadas, a menina de capuz vermelha há de receber um ensinamento. A mãe quer inspirar-lhe responsabilidade, para isso, entrega-lhe a cesta de doces para a vovó. A menina tem de ir e voltar pelo caminho indicado, resta-lhe tempo para aspirar o perfume das flores. Há pedras e tropeços pela estrada, distrações, mas o objetivo é bem claro, adoçar o dia da menina, da mãe, da avó. Há, contudo, o amargo. Ele espreita por trás das árvores, espera o momento em que a menina se distraiu, e trama contra a doçura.

Ele é invejoso, pois os doces sequer fazem parte da sua dieta de predador. Ele também quer dar lição, a lição do mais forte sobre o mais fraco. A lição que sobrepõe a toda justiça ou brandura, pois utiliza da força e da violência. A menina aprenderá tarde demais, já na barriga do lobo. E na história original, lembrem bem, não há caçador. Há somente a injustiça lupina.

Não sabem trabalhar em grupo, porque quando algo não é do seu gosto, cruzam os braços, fingem-se de indignadas e pousam seus traseiros sobre seus rabos para fofocar. Ah! Como fofocam as pequerruchas. Suas línguas são mais compridas do que o amargor de suas impotências. Porque já desistiram de aprender, acham que ninguém mais o pode. Somem da arena quando se trata de encarar o novo, mas do velho e do empoeirado entendem bem. Colocam-lhes bem à frente as suas ideias trazidas de casa, requentadas, prontas para pipocar de suas bocas cheias de dentes. E repetem, repetem sempre: "Como eram bons os outros tempos". 

Nos outros tempos, não havia licença para dizer o que se achava, havia só a continência surda batida frente a vista cega das ordenações. Não havia o colorido doce da diversidade, mas a mesmice tosca das cópias fiéis ao comando dado pelos profetas de um milhão de anos atrás. "O certo é a velha moda das tataravós. Qualquer outra coisa é astúcia de meninadas."

E há o doce das incertezas, das ajudas mútuas, das buscas com lampião. Há a beleza do acerto e do erro, da paciência, da consolação na queda. Há o respeito aos divergentes meios, e há solidariedade para a construção.

Há o doce novo. O amargo velho. O doce-amargo da conciliação.

D'Ajuda

     Decidi de última hora passar o fim de ano em Arraial da Ajuda. Não é a primeira vez que visito este distrito de Porto Seguro, da primeira vez ficamos em uma pousada, foram só dois dias. A pousada não era muito legal, foi cara, o ventilador não prestava, tinha pernilongos demais, eu esqueci de levar o repelente, mas em compensação visitei a praia  mais linda que já vi até hoje: Taípe. Areia rosada, água limpinha, deserta! Imagine o que é você ter uma praia linda e limpa só para você e sua família. Sem ambulantes vendendo quinquilharias, sem ninguém bebendo e falando besteira, sem grupo musical com músicas da moda feias. Dessa vez não voltamos lá. 
        Às vésperas de viajar, é óbvio, não obtive vagas em nenhum hotel ou pousada, pelo menos não um preço ao meu alcance. Não tão perto da virada do ano. Quem em sã consciência gastaria mais de 4 mil reais numa única viagem só em hospedagem? Não eu! Optamos por acampar. Meu primeiro camping, mas meu irmão estava junto, então ele nos  deu todas as dicas. Não fui picada por nenhuma cobra, aliás, nem as vi. O camping tinha água corrente, banheiros com chuveiro quente, tomadas elétricas, um gramado legal, muitas árvores e sombras. Também tinha formigas, pernilongos, besouros, pulgas, pássaros, cães, crianças e adolescentes. Nada de cobras. Ponto positivo. Inesperadamente gostei de dormir em colchão inflável, só padeci por culpa de um mosquiteiro esburacado além da conta, mas isso não é nada. Eu já vivi 3 anos em uma cidade praiana e muriçocas não me assustam. 
       Dividir a barraca com meu marido e com minha filha foi... apertado. Mas dormi bem, olhando pra lua e para as copas das árvores. Dividir banheiro com mais duas dúzias de mulheres também não é a coisa mais horrível  pela qual passei. A gente aprende a respeitar o espaço do outro, ser cuidadoso, tomar banho rápido, economizar água. Foi bom para minha filha essa experiência nova de se virar um pouco sem a superproteção da vó. Guardei essa anotação para futuras viagens: não é preciso encher a mala de coisas, é melhor levar bolsas mais leves, com coisas essenciais, saber onde cada coisa está ao invés de precisar revirar tudo para achar algo urgente. Aprendi também que muitos campistas andam com carrões importados, usam barracas que custam uns 2 mil reais.

       Mas, Arraial é praia, então vamos falar delas: visitei várias. Fomos à Pitinga, Parracho, Lagoa Azul, Praia dos Coqueiros (em Trancoso).  Algumas pessoas medem a qualidade das praias pela qualidade das barracas. Eu não. Na infância, íamos à praia sem depender de comércio nenhum. Levávamos lanches, água, toalha para forrar a areia e sentar, procurávamos a sombra das árvores. Hoje você chega na praia e é alertada de quanto deve consumir para ter direito a sentar embaixo de um sombreiro com mesas e cadeiras plásticas. Tudo é caro. De dois em dois minutos te empurram mercadorias. Não estou aqui falando contra os ambulantes, nem contra o comércio à beira da praia. Porém, ninguém pode negar que ir à praia hoje em dia implica um consumismo sem sentido, uma padronização de como se deve vestir, o que se deve comer, o que se deve visitar... E a praia em si fica pequena, apertada entre o consumir e o exibir-se. 
       A melhor praia a que visitamos dessa vez foi a Lagoa Azul. Note-se: lagoa mesmo não tinha, só um barzinho caindo aos pedaços, com uma atendente super simpática que nos vendeu as batatas fritas mais caras e murchas de Arraial, além de nos empurrar as latinhas de refrigerantes mais salgadas da minha vida: 7 reais. Apesar disso, o rústico do lugar, o fato de haver somente mais 5 pessoas num raio de 1km (um casal de rapazes, tímidos numa sombra e três surfistas aguardando nas redes ondas melhores) e o mar sem conchas me agradaram muito. Sem falar que eu e meu irmão nos embrenhamos nas falésias para buscar os últimos resquícios da lagoa azul que secou. Encontramos uma decepcionante
poça esbranquiçada entre as rochas, depois de passarmos quase de cócoras sob a vegetação densa. Fotografamos a decepção e retornamos. Mas foram as melhores fotos da viagem toda. Afinal, falésias são sempre impressionantes. Ainda mais naquele ponto em que havia delas rosa e branca misturadas. Foi idílico, especialmente pela caminhada de 3km para chegarmos até a praia. Mais 3km para voltar. Ha! São os custos da aventura.

      O retorno pro camping foi épico. Épicamente desagradável. A Sprinter que pegamos, depois de fila na saída da praia da Pitinga, que nos custou os inacreditáveis 6 reais por cabeça, pegou um engarrafamento garrafal na subida de volta a Arraial. Para completar o motorista pegou 4 turistas argentinos que foram enlatados em pé ao nosso lado, conversadores, cavaquinho a tiracolo, os coitados cozinharam junto conosco debaixo do sol até que o bom senso limitado do motorista da Sprinter pediu ao cobrador que abrisse a porta lateral para ventilar os "ticos" (notem, ventilar o turista estrangeiro, os nacionais que cozinhassem!). Numa ladeira em que o carro morreu, 10 minutos se passaram e os rapazes se pronunciaram por seguir caminho a pé foram advertidos que até ali (menos da metade do destino final) eles teriam de pagar 4 reais! Não resisti a sugerir que eles se juntassem e dessem uma sova no baixote que lhes cobrava ameaçadoramente (eles, cada um, passando uns 4 palmos de altura do moleque). Parece-me que a nossa cultura de paz os fez voltar obedientes para o transporte e aguardar pacientemente até o ponto final. Enquanto isso, minha pressão caía abaixo dos 8. E viva aos trópicos!
     Como ia me esquecer! A igrejinha de Nossa Senhora D'Ajuda! Não a visitei desta ida, mas passei por ela várias vezes. Tenho várias fotografias nos 150 degraus que subi umas três vezes em quatro dias. A vista do alto é belíssima: céu, mar, a mata, a areia, grande parte do Arraial, a sensação de ver o mesmo que Cabral...
     De resto foi a volta pra casa, aliás, a estrada em si é cheia de paisagens bonitas. Paramos em Itapetinga duas vezes: uma na ida, pra tomar um café reforçado numa padaria cujo paradeiro descobrimos por meio de um senhor que nos guiou do posto de gasolina até lá; e na volta, para procurar uma farmácia aberta. Dores de cabeça de lado, voltar para casa é o melhor de todas as viagens.
     Voltam as lembranças.