segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Nascimento



Nasceu por acidente após uma grande explosão. Não havia ao certo qualquer planejamento para a sua acolhida, ela própria não sabia o que esperar daquela nova vida, mas nascia mesmo assim, sem convite, a fim de alegrar os ares.

Se avisassem com antecedência teria se arrumado mais, estava nascendo muito bagunçada. Sem pompa, sem circunstância, nascendo assim feito filho de pais pobres. Isso não foi desculpa, sorriu. Por que não sorriria? Quem nasce não o faz por fé e esperança? Não é a vida uma loteria sem sorte, só sina?

Fizessem festa, pois estava nascendo. Soltassem foguetes, pois hoje era o seu dia, e maior do que este outro não haveria. Cumprimentou os pais, agradeceu ao médico, e saltou num pé só até a saída. Urgia olhar para o céu que tomava por padrinho, e satisfeita constatar que este céu daqui era azul. Engraçado o céu ser azul.

O que viria depois não poderia saber, pois ainda não viera. Mas o seu coração estava cheio de esperanças e livre de qualquer medo, era jovem demais para entender que havia algo a se temer.

Nasceu pura como um bebê.

sábado, 29 de dezembro de 2012

A gafe


De repente, foi como se alguém tivesse cometido uma terrível gafe ali no meio do povo. Algo como baixar as calças e badalar o sino ou abrir uma bíblia e fazer pregação sobre a importância do dízimo. Notem que pregar sobre o fim do mundo não é gafe, é o arroz com feijão dos profetas darem sua própria versão de um fim que é certo e está sempre próximo. Em seu íntimo, aonde não ia a régua das averiguações cromáticas, pois lá só havia idéias puramente conceituais, daquelas limpas de sentimentos, não os sentimentos romance-água-com-açúcar, mas os sentimentos derivados dos cinco sentidos e adjacentes, bem lá nestes ideais intraduzíveis, Alice estava mais preocupada com o caminho até chegar ao fim do mundo, o devir antes do fim, o amanhã que a gente pensa que nunca chega, mas que chega todos os dias sem a gente perceber. 

Justo por isso ela se preocupou com o de repente que se instaurou, quando todos agiram como se alguém tivesse cometido uma terrível gafe ali no meio do povo, quando, na real, nada demais aconteceu. Só um cara com dúvidas ortográficas, outro perdido demais para dar atenção às incertezas próximas, porque estava mais interessado nas incertezas futuras, outro com o nariz muito sensível.

O professor partiu sem nem mesmo ter chegado. Saiu para dar espaço no palco ao novo personagem que se apresentava, atencioso ao próprio umbigo, mas que acrescentou ao cenário um novo perfume. Alice não se lembrava de ter esbarrado com o referido antes, mas isso não importava muito, achou que o rapaz tinha cara de fome e às barrigas vazias é cortês oferecer forragem.

- Como assim você convida para comer e depois dá o fora? Isso não se faz nem a um inimigo, quanto mais a quem você quer ao seu lado num Cagaço. Vamos comer! Eu pago! Quem quiser me segue. – Gritou ela, com a mão na cintura, rebolando muito para bater a mão no bolso que não estava lá e por isso mesmo estava vazio, mas que metaforicamente serviria muito bem para pagar o que quisesse a quem bem quisesse, sem medo de ser obrigada a lavar os pratos depois de terminado o banquete, o que provavelmente aconteceria, pois não tinha um níquel furado escondido em parte alguma.


sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Trova I


Aprendi esta história, com pessoa nada santa
Que me disse: “Amigo, vou lhe contar este caso,
Para o acaso de algum dia, nas tristes carreiras da vida
Encontrares o Inimigo, longe de terra santa
E mesmo sem uma lança, fique livre do perigo.

Antes que nosso Senhor penasse na Cruz por nós
Andava o Diabo solto, fazendo as suas lambanças.
Sem regra nem temperança, erguia o Homem pelo cós
Fosse noite ou fosse dia, sem feriado ou descanso.

O Homem clamou ao Céu por maior reconhecimento,
Prometendo em troca da guarida oração e ornamento.
“Tá bem”, respondeu o Emissário ao humano requerimento.
“Decreto de hoje para frente o seguinte regimento:

Proibidos estão os demos de atentar no turno diurno;
Estabeleço o clarão do dia como repouso do Avesso.
Fica assim, por direito adquirido estabelecida a carga horária
De tentadores e atentados, estando sujeitos os desrespeitosos
Ao castigo justo e divino Preço”

E assim foi e seguiu sendo por muitas eras:
O Demo escondido e reinando nas Trevas,
O Homem crescendo e multiplicando na Terra,
E Deus vigilante espiando do Céu.

Mas o Homem,  criado por Deus em má hora,
De tanto aprontar e fazer marolas
Fez o Cão gargalhar  nas profundas do Inferno
Fez a Deus de desgosto chorar no  Éden.

As lágrimas da divindade despencaram diluvianas
Arrasaram babilônias e babéis desprevenidas,
Afogaram bons e maus,  pouparam só Noé
E a sua Arca da Aliança.

Ressabiado, prometeu Deus jamais punir os homens
(com afogamentos). Da próxima seria fogo,
Praga, Guerra, Fome, Peste
Tsunami ou crack da Bolsa.

Fiascos do fim do mundo


Publicando novamente este texto de julho de 2011.

Naquele dia por acaso resolveram promover o Fim do mundo. Em hora imprópria e sem a pompa dos símbolos bíblicos. Fim de mundo fajuto: sem anjo nem arcanjo tocando trombeta no céu, nenhum dragão de sete cabeças cuspindo pragas do Egito. Esqueceram de fazer nascerem os doze bezerros pintados de ouro com três cabeças cada. Não contrataram a Santa para se vestir de Prostituta e parir um Messiazinho ao avesso para trazer ao mundo os consolos da destruição total. 

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Lançamento do romance "As extraordinárias histórias do Porto da Santa cruz!"




Estará acontecendo dia 21 de Dezembro de 2012, na Praça Moisés Felix dos Santos na cidade de Cândido Sales, estado da Bahia, o lançamento histórico do primeiro romance de Cândido Sales. “As Histórias Extraordinárias do Porto de Santa Cruz”. Histórias de ficção sob um lastro real. Escrito pelo poeta Luiz Carlos Figueiredo baseado nas histórias coletadas durante 40 anos pelo jornalista Jota do Vale.
Em 1964, Jota do Vale era correspondente dos Jornais “Tribuna do Café” de Vitória da Conquista e “Vigia do Vale” do Norte de Minas Gerais. Neste período, enquanto desbravava literalmente os sertões, ele, munido de um velho veraneio e de posse de um gravador a pilhas, entrevistou centenas de moradores em toda essa região, que contaram histórias maravilhosas. 
Nos anos 1990, Luiz Carlos Figueiredo e alguns amigos, enquanto tomavam “umas e outras”, registraram várias horas de entrevista com “Nenzim Fussura” (faleceu, anos depois), às margens do Rio Pardo, no próprio Porto de Santa Cruz, através das lentes de uma “câmara doméstica”.  Além de ter sido o “balseiro” do Porto nos áureos tempos e dele próprio ser um dos principais personagens do livro por –segundo ele – ter sido engolido por uma cobra jibóia, o “velho lobisomem” – como era conhecido – contou outras histórias hilárias do seu tempo no velho povoado. No ano passado, o jornalista e o poeta cruzaram suas histórias e resolveram registrar em livro um pedaço delicioso da história do nosso Município. O resultado foi “As Histórias Extraordinárias do Porto de Santa Cruz” um romance de 274 páginas.

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Dos diários de viagem e das impressões de quem visita o inferno

Saía pouco de casa, isso fazia dela  aquele tipo chato de pessoa que desgosta de tudo quando se vê obrigada a sair pelo mundo. A tudo estranhava e com tudo cismava. Quanto mais saía de casa mais se convencia de que não há lugar melhor do que o lar. Bem, vamos à história, antes que alguém se intoxique com este misantropismo.

Obrigada estava a passar três dias em uma cidade dista - e essa inversão da ordem normal da oração tem tudo a ver com a razão de ir lá:  foi ao campus da universidade para estudar literatura do século XVI e XVII. E não é que os escritores portugueses desses séculos adoravam escrever imitando a sintaxe latina, por isso invertiam tudo? Pensava em dizer ao professor que eles falavam como o Mestre Yoda, mas preferiu não se fazer de motivo de chacota da turma.

Primeiro desagrado da viagem. De sua cidade até o baldeamento eram em média 90 km vencidos com uma hora de carro ou duas horas de ônibus (que podem virar duas e meia, depende do azar do freguês, cortesia da empresa de transportes) e do baldeamento até o destino final eram 130 km. Ocorria o improvável de que o valor das duas passagens era o mesmo. Viajando de uma cidade a outra descobria essa injustiça.

O interior do ônibus parecia um forno aquecido à lenha. Todas as janelas estavam abertas, mas nenhuma brisa dignava-se a entrar para salvar os passageiros de uma viagem climatizada no inferno. A paisagem ressequida da estrada não ajudava em nada. A vegetação estava tão seca que a qualquer momento soltaria faíscas. Ossadas de animais enfeitavam de branco marfim o vermelho e cinza geral. O calor desprendido do asfalto formava miragens de carros que não vinham. Tiraria a roupa, se isto não fosse totalmente inapropriado em um transporte público. E vamos inteirar: não se tratava de um calor ameno, daqueles descritos em livros escritos no hemisfério norte. Era calor legítimo, digno dos trópicos, linear ao Equador, desprovido da umidade das florestas visto que a região era semiárida.

E quando finalmente alcançou a garagem suja que a tal viação de ônibus tomava por embarque e desembarque de passageiros, descobriu, com grande desgosto, que a tal cidade destino era tão estafante e sem vento quanto o interior do ônibus. Somente assim podia compreender que a moda feminina numa cidadezinha do interior nordestino fosse a das coxas de fora. Como todos sabem, cidades do interior costumam ser puritanas, ainda mais as do nordeste. Ali qualquer pudor seria castigado. Por grande ironia, a liberdade de vestir não privilegiava os homens, que ainda sob o sol de um quase deserto mantinham-se alinhados em suas calças jeans e camisetas de manga.

Suas roupas, como se pode prever, destoavam do lugar. Calças, blusas de manga, bermudas no mínimo mostrando o joelho. Arrependeu-se, quem poderia prever, de não gostar de vestidos. Admitiu nos primeiros cinquenta passos que o clima influi grandemente sobre os hábitos das pessoas e que qualquer um sobrevivendo debaixo de um sol daqueles se habituaria a mexer-se o menos possível, para poupar calorias. Aquela devia ser, mui provavelmente, uma gente de muito cálculo.

O que seria dela então, quando se visse dentro da sala de aula. Seria um martírio, já imaginava. Como nem tudo consegue ser tão ruim quanto esperamos que seja, lá estava uma confortável, espaçosa e bem ventilada sala. Ar condicionado, ventiladores, bebedores perto, cadeiras acolchoadas. Como mudara o ensino público depois que se formara. Quase acreditava que a educação em seu país estava melhorando. Quase.

Fé renovada, deu entrada no hotel e aproveitou o banho inadiável antes de enfrentar os próximos três longos e inesquecíveis dias de estudo.

Canção de despedida

A primeira vez em que senti o peso da palavra despedida foi no pré-escolar. Fim do primeiro ano de estudos, festas de natal, despedidas. Passamos uma semana ensaiando a "Despedida" do Roberto Carlos. Quem conhece sabe que essa música é muito triste, para mim pelo menos, quando ouço "Despedida" do Roberto eu sempre sinto que quem está se despedindo vai morrer, nunca mais voltar, está dando um adeus definitivo. O fato é que chorei pra me despedir de colegas e professores que na maioria estavam lá no ano que chegou.

Não sei se para não repetir essa primeira dose de nostalgia antecipada, ou por uma outra razão aqui não aparente, passei a detestar despedidas. Fujo delas sempre que posso. Dou bolo em confraternizações de final de ano, em encerramentos, em culminâncias, em velórios. Até em velórios. Quer adeus mais definitivo do que o último?

É desnecessário ficar expressando nosso pesar pela interrupção da convivência com os outros. Primeiro, talvez nem exista o tal pesar, há pessoas que não nos fariam falta nenhuma e às quais a ausência ou presença nos seria indiferente.  Por que chorar se a pessoa nem está morrendo? Não é gosto por melodrama?

Infelizmente, vivemos em uma sociedade tão hipócrita que nos sentimos obrigados a fazer de conta que sentiremos falta das pessoas. Quer dizer, as pessoas andam com a autoestima tão em baixa que precisam de qualquer migalha de fingimento para não se sentirem mais em baixa ainda. Será possível que ninguém é seguro o suficiente para, mesmo não recebendo nenhuma declaração de amor de última hora do sujeito para o qual só disse "bom-dia" por educação, sentir-se ainda o mesmo de sempre sem tirar nem pôr pedaços de amor próprio? As pessoas dependem demais da opinião alheia (sempre dependeram, eu acho) e isso é um peso desnecessário. São rituais aos quais nos obrigamos para demonstrar sentimentos que não possuímos.

Claro, nem todas as despedidas são hipócritas. Não vamos exagerar no ceticismo.   É a artificialidade do ritual que me incomoda.

Finalizações, fechamentos de ciclos, são coisas necessárias... É necessário dizer que acabou o que todos estão vendo que está acabado? Comemorar o fim de uma guerra, celebrar o término de um período detestável, aí sim, parece-me mais adequada a celebração. Mas, dados os descontos, não é suficiente um "tchau, até logo"? Faz mais sentido fingirmos que nos veremos de novo em breve, que a separação é momentânea do que demonstrações sentimentais forçadas.

Então é isso. Acabou.

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Gostaria de dizer...

, gostaria de dizer, enquanto há tempo, que não há tempo. Não vejo positividade em nada, aliás, vejo sim, pontos negativos em tudo. O cinza é a cor de todas as coisas e as pessoas vão se pintando de um marrom bosta permanente. Retirei minha fé de todas as esperanças vãs; excluí meu nome das listas de boas festas dos amigos; não respondo nem os bons dias, nem os boas tardes, nem as boas noites, porque não há bons dias, nem boas tardes, nem boas noites.

Iluda-se quem quiser, eu não me iludo, não há futuro, só há essa droga de presente, negativo em tudo, sem perspectivas, repetitivo, povoada de gentinha que acha saber muito e na verdade não sabe de nada. NINGUÉM SABE DE NADA. Eu faço parte desse ninguém, e mais, nem quero passar a saber. Deixem-me em paz, eu não quero saber. 

Cuspo dos meus ouvidos os seus sonhos bestas, as suas alegrias bestas, os seus sorrisos bestas, os seus planejamentos bestas. Cuspo e cuspo outra vez. Esqueça-se de mim. Esqueça-se de todos nós. De vocês todos eu já me esqueci, de vocês, de você, de mim, de todos nós, eu já me esqueci. Já acabou. É finito. Não tem eternidade, não tem continuidade. É negativo. É nulo. 

Era isso.

sábado, 3 de novembro de 2012

Chuva de Finados

A sequidão durou o ano inteiro
Sol rachando a moleira do povo molenga.
Povo ingrato, povo fraco
Povo sem vontade de trabalhar...

- Êpa! Sem vontade de trabalhar, não!
Poetinha metida a besta, botando o nariz onde não lhe corresponde!
Desde quando, desde onde o povo não tem vontade de trabalhar?
O povo trabalha sim e trabalha muito.

Trabalha da madrugada ao deitar do sol,
trabalha um monte e tira pouco,
e ainda recebe esculacho quando reclama.
Pro patrão o povo não pode cansar,
não pode chorar,
não pode resmungar,
não pode sindicalizar
ou vira sem-terra.

Preguiçoso é a senhora puta que lhes pariu
o povo faz é milagre, vive de migalhas
mora onde ninguém mais quer morar,
tira leite de pedras, carne de pedras,
ovos de pedras, mel de pedras
e faz isso com o intuito SÓ de sobreviver.

Porque se fosse para depender
da misericórdia ou da bondade,
ou dos direitos humanos
ou das negociações de paz
ou dos acordos bilaterais
o povo, meu povo, se danava.

Só o que o povo pode esperar é a chuva,
e esta não é governo nenhum que manda,
quem manda é o céu
e este ano o céu fez esperar o ano inteiro
e deixou só para chover nos Finados.

Finados já os rebanhos,
Finadas as plantações,
Finados muitos sonhos,
Finadas rebeliões
por falta de chuva.

Mas o que importa?
O importante é que choveu.

terça-feira, 4 de setembro de 2012

O bote do ódio

Espreita escondido atrás do olho esquerdo, depois do direito. É negro, tem a profundidade das coisas sem fim. Rodeia, atocaia, mais parece a vítima que se esconde do que o carrasco que aguarda o momento para empunhar o machado.

Houve o tempo em que passou adormecido, temeroso de se dar a conhecer à luz. Envergonhava-lhe sua figura disforme, malhada por indisfarçáveis manchas de desespero. Toda a sua força concentrada em suas convicções, aliás, crenças. O que por nada muda só pode ser medido pela régua da fé. Conhecia a razão pela qual fora criado, de certeza tão indiscutível quanto o nascer e renascer do sol todas as manhãs.

Nasceu então, brilhante, áspero, de altura inexplicável, cheio de gritos e roncos de dor. Avançou cegamente em todas as direções, bateu dolorosamente sobre a superfície dos seres, rebarbou, espumou e recuou, para voltar a se expandir e ir repelindo os sentimentos mesquinhos e de menor monta.

E rasgou e pisou, chorou um vômito amargo de afogado sem esperanças. Suas lágrimas se tornaram espinhos que rasgaram as carnes próximas. Rolou sangue e suor, e gargalhadas histéricas de incompreensão.

E riu, riu, riu, até cair. Desejou seguir de arrasto os alvos de sua dor, mas do tombo não mais se levantou. Asfixiou ali, em frente à platéia muda, com as mulheres tapando os olhos dos filhos pequenos para não verem o vexame da sua nudez esquelética.

O seu sorriso de morto eram os dentes falhos de uma caveira de olhos apodrecidos.


quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Reclamar e chorar

Esse mundo é uma droga, todo mundo sabe. Mas ainda tem gente que reclama e cruza os braços. 

Adianta reclamar da droga que o mundo é? Reclamar melhora? Reclamar serve para as democracias, para os serviços de atendimento ao consumidor, para os serviços de proteção disso e daquilo outro, para os pastores e padres, para o papa, para o pai, para a mãe. Porém, reclamar não serve para melhorar o mundo. 

A vida não melhora porque você reclama. Ela melhora se você trabalha, transforma, desmonta e remonta, se arrepende, pede perdão, conserta.

A vida não é muro de lamentações. Então, é só assim, vou chorar atrás do muro e tudo irá se resolver? Tudo indo para o buraco, vou sentar no meio da estrada e chorar. Tá pensando que a vida é fácil assim, camarada? Não é não! Acorda, chorar não resolve nada. Lágrima só comove mocinho de filme de caubói, mesmo assim, só se a mocinha for muito bonita. Senta no meio da estrada e chora pra você ver se não te atropelam. Senta! Senta!

Quando eu era pequena e chorava por alguma coisa - e olhem que eu nunca fui de chorar, mas já chorei sim, para o caso de alguém duvidar - a minha vó me dizia "Tu ainda deita na cama pra chorar? Chore não minha flor, que coisa pior sempre há de vir". Em seguida me ameaçava de dar uma surra pra que eu chorasse com razão. Porque chorar sem razão é fraqueza. Chorar sem razão é fricote. E nessa vida se ganha algo com fricote?

Por isso, minhas flores, não chorem. Não vale a pena. Todo mundo sabe que chorar é só desabafo, lágrimas não movem o mundo. Tampouco lamentações. Mas se a precisão for muita, então chore. Mas não se demore muito nisso, porque o mundo gira e não espera.

E não chore na cama que é lugar quente. Nem chore no escuro, nem detrás do muro. Chore na pia onde a água é fria.

terça-feira, 7 de agosto de 2012

A angústia de escrever

Perdi o fio do risco, emudeci. Olho a tela em branco, aguardando caracteres a serem digitados e não tenho o que dizer. Quem diria, que eu, algum dia, ficaria sem ter que dizer, eu que já disse o que os outros não queriam ouvir, o que ninguém sabia que podia ser dito, o que todos queriam, mas não diziam.

Foi assim só: calei-me. Nem calos faço mais nos pulsos por apoiá-los sem jeito na quina da escrivaninha. Perdi o jeito. Mas também, escrever para quem? Ninguém mais a desafiar com meus desaforos líricos, minhas sátiras tortas, as sandices estão morrendo todas no meu cérebro, sem contaminar a folha mágica que brilha dentro do computador. 

Para onde vão as letras depois que as escrevo? Como faz para piscarem antes da barra negra? Será verdade que alguém do outro lado pode ver os rabiscos que faço do lado de cá? E o que lê este alguém? São os sinais pretos retorcidos do indo arábico ou são os meus próprios pensamentos que ouve, perdidos dentro de sua cabeça?

Não sei. Se soubesse lhes diria. Mas eu não sei.

terça-feira, 22 de maio de 2012

Poesia apocalíptico-moderna ou As bananas



O poeta era professor,
se chama Antonio Carlos Viana,
vendia aulas na escola,
mas não conseguia poetar.

Daí ele largou o magistério
para vender hot dog
e acabou vendendo contos
para a Playboy.

E fez fama, se tornou famigerado.
Assim nos disse professor Paulo André.

E eu? E eu?
Também sou professora
mal paga, de metro,
rima e versos poucos.

Será que pra ganhar fama
terei que vender bananas na feira?


quinta-feira, 22 de março de 2012

Humana solidão





Pague amor com ódio,
atenção com indiferença,
oração com pragas,
dedicação com desleixo.

Esmague a mão que lhe estendem,
arranque os ombros oferecidos,
esmurre as flores ofertadas,
pise em túmulos recém cobertos.

Não chore pela vida desperdiçada,
Não lamente os amigos perdidos,
Segue pelo caminho estreito-

- dos sonhos minguados,
das queixas caladas,
das lembranças esquecidas.




segunda-feira, 12 de março de 2012

O ventre enterrado





"Deus condenou a Serpente a rastejar seu ventre sobre a terra por seduzir Eva e Adão. Ainda hoje, como bicho de debaixo do chão a Serpente consegue engambelar muitos Adãos e muitas Evas e socá-los no bucho. Dizem que esses pobres vivem eternamente presos por lá."


A nossa Eva teve oito filhos. Oito para dar sorte, se fossem Sete dariam na conta do mentiroso. Oito. Um de cada pai, aliás, dois de um só, foram gêmeos. Cinco nasceram mortos, dois as avós criaram e um filho, o último, foi aquele a quem Eva amou.

Esse um, o último, foi o único a quem Eva não tentou matar. Sem pular, sem tomar beberagem, sem dormir de barriga para baixo no sol quente e na pedra fria. O último não era só filho do pai e do ventre, era filho seu também. Filho do desejo, da vontade, da carência de ser mãe. Filho que não foi feito à força nem por acidente. Era filho só; sem nada especial, com a diferença de lhe ter trazido juízo.

Foi o um do choro fino e das noites longas, cheias de cólicas e chás. O das fraldas cozidas e passadas com ferro de brasa. O dos remédios caros e das febres altas. Das garatujas em papel pautado e dos rabiscos nas paredes encardidas das casas de aluguel.

Cria difícil, teimosa em minguar, reimosa de criar. Moço bom e trabalhador, dos que trazem flor nos dias de anos e levam para trocar os óculos. Forçudo, bom de render meninos, muitos dos quais Eva ninou.

Tão bom filho, tão bom moço, até vela acesa nos dedos duros da velha finada Eva botou.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

A carne rasga

[POEMA ESCRITO NUM DIA DE CARNAVAL ENSANGUENTADO]


É carnaval, festa da carne. A carne é fraca 
e não pode viver só de suor e arroz com feijão, 
a carne não vive somente de pão, hóstia 
e água mineral. É carnaval, a ocasião
pede o suor da dança e da volúpia; pede
a fartura da mesa e a embriaguez do álcool.

Mas a carne é fraca, lembram? Desidrata-se 
com o sol, intoxica-se com as drogas, deforma-se 
sob o efeito dos excessos. E chora 
lágrimas de sangue quando se rasga.

A carne rasga! Não é metal, 
não é couro curtido, tão pouco é rocha sólida. 
A carne é sangue, tecido e água. Ela se rasga,
 rompe, desmancha, queima, derrete, vaporiza-se.

É fraca. Não suporta além do limite 
de seu conta-giros; arqueia 
até quase tocar o chão na dança, 
mas na queda tomba. Rodopia 
alegre e cantante sob o som da euforia 
para depois tontear com o impacto 
seco do muro de concreto.

A carne vê tudo dobrado na estrada, 
depois da dança e do álcool, mas não vê 
a outra carne que vem no sentido contrário 
dentro do seu invólucro de metal. 

Grita, uiva e homenageia a banda, 
cai em bandas pelas beiras das estradas ensanguentadas.

Levanta a poeira quando pula 
no ritmo sincopado dos tambores, 
arrasta-se na poeira dos barrancos descampados.

Ama, espuma, contorce-se de prazer 
pelo corpo amado; Retorce, engasga, 
asfixia-se na solidão da morte incerta dos acidentes.

E canta, e vibra! Os últimos acordes de dor agônica
para a Lua avermelhada que lhe espia a sorte.