domingo, 27 de junho de 2010

A razão do riso




"Humana ao ponto de se aproximar de uma mulher ainda ensanguentada e vestida de noiva para suprir a mórbida curiosidade de se sentir próxima a ela e conhecer sua história. Não havia nenhum destino planejado para esta informação, somente aquele que damos ao bizarro e ao diferente quando cruzam o nosso caminho. Havia também uma pitada do tempero chamado de espírito crítico pelos mestres. A mesma coisa que nos faz rir dos cômicos enquanto interpretam  suas farsas idiotas. Rimos justamente porque consideramos uma idiotice alheia àquele que ri; rimos pelo ridículo do outro e não nosso; rimos pelo alívio do defeito não nos ser exclusivo. É por isso que para achar graça em alguma desgraça ou piada é necessário que nos sintamos imunes a ela no momento da representação..."

A desgraça da outra era fácil de ser encarada, não era a sua própria desgraça.
* A personagem da qual este trecho foi retirado é enfermeira na emergência de um grande hospital.

sábado, 26 de junho de 2010

Comunicação

Falamos
ninguem nos ouve

Falamos com palavras
não nos compreendem
Falamos com lágrimas
ninguém sente compaixão

Falamos com violência
apatia
Falamos com ódio
indiferença
Falamos devagar
fingem não nos ouvir

Falamos através de manifestos
arquivam os originais
Falamos através de protestos
armam cordões de isolamento ao nosso redor
Falamos através da seção de carta dos leitores
queimam as nossas cartas

Pedimos
Gritamos
Imploramos
Esmurramos
Chutamos
Mordemos
 

Olham para o outro lado
Só nos resta calar
O Silêncio fala por nós.




sexta-feira, 25 de junho de 2010

Mobilização Nacional dos ACS/ACE




Caminhada dos ACS de Cândido Sales na Mobilização Nacional em prol do Piso Salarial da Categoria


Nos dias 16 e 17 de junho os Agentes Comunitários de Saúde e os Agentes de Combate a Endemias do Brasil promoveram uma mobilização nacional em prol da aprovação do piso salarial das categorias. Caravanas de ACS/ACE estiveram em Brasília para pressionar o legislativo a não adiar por mais um ano a criação do  plano de carreira.

O Agente Comunitário de Saúde é profissional subordinado às Unidades de Saúde da Família, através de visitas aos domicílio das famílias e reuniões comunitária  fornecem informações sobre prevenção em saúde, cuidados pré-natais, acompanham gestantes, crianças pequenas, hipertensos, diabéticos, tuberculosos e pacientes com hanseníase. Grande parte destes profissionais tem como base o salário mínimos, muitos ainda não recebem insalubridade e exercem funções além das suas atribuições.

 O Plano de Carreira continua em discussão no Congresso Nacional, a previsão é que seja votado até o final de junho deste ano.



Detalhes das negociações do CONACS no Congresso

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Pequeno encontro

- É perigoso uma moça tão bonita andar por aí sozinha sem ninguém que a proteja. Precisa de alguma proteção? Uma carona ou talvez um ombro amigo?

Ela aceitou a carona.

Deu a partida e o carro voltou a deslizar pela avenida bem cuidada.

- Eu faço tudo por quem sabe retribuir. Para moças bonitas faço muito mais.

Com o braço direito na direção, Franco pensou que era seu dia de sorte. Discretamente tirou as medidas da moça com o olhar microscópico,
estacionando a inspeção nos lábios. “Será que ela sabe morder? Mulher que não morde é fria, sem mordida não há amor possível”.

A loira tinha um olhar atrevido, um jeito livre e ousado de erguer a cabeça e projetar o perfil e, ao mesmo tempo, uma boca que parecia sempre prestes a
beijar. Quando falava, seus lábios faziam movimentos provocantes e vagamente cínicos. A desenvoltura em aceitar a carona e se insinuar
para um desconhecido não deixaram dúvidas a Franco, tratava-se de uma cobra criada pronta para dar o bote. “As perigosas são as mais atraentes”.

Decidiu deixar a visita ao banco para outro momento.Elisa. Precisava dar atenção à sua mais nova amiga. Evitaria falar sobre as circunstâncias
que a levaram a caminhar errante pelas ruas de um bairro imundo. Possuía ares um tanto vulgares, de gente mal criada e cheia de vontades,
podia ser uma vigarista, talvez, mas não tinha cara de profissional. O corpo bem feito e cuidado seria um cartão de visitas master em qualquer ocasião.

Trataria bem da moça. Conhecia a natureza das mulheres: “A mulher é mercenária. Sem sentir e sem saber, está sempre se vendendo por alguma coisa:
ou posição, ou glória, ou dinheiro.”

Jantariam. Talvez ele comprasse umas sandálias novas para ela.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

TSE decide que Ficha Limpa vale para condenados antes da lei

TSE decide que Ficha Limpa vale para condenados antes da lei

Será que vai sobrar alguém para ser votado neste país? Eu acho que sim, malandro que é malandro mesmo não tem complicações com a jUSTIÇA.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

O amanhã

O Amanhã não chegou
nem chegará
sem ninguém aqui
para o esperar.

Ele virá, não temam
Ele virá.
Certo como o hoje
que passará.

Vem depressa, Amanhã
O Hoje cansa.

domingo, 13 de junho de 2010

Agulhas, agulhas, agulhas


Quando era criança eu tinha medo de vacina. Sério, eu implicava até com as gotinhas, era a mesma coisa com dentista, cheguei a me enfiar debaixo da cama para não ir ao dentista. Normal, conheço poucas crianças menores de dez anos que não odeiem vacinas, dentistas, remédios. Covardia é aceitável em crianças. E nos adultos?
Este ano eu comecei a trabalhar com saúde, a primeira campanha que encarei foi a campanha contra H1N1. Foi nesta campanha que eu descobri o grande número de adultos que se recusam a receber vacinas, qualquer uma, os “resistentes” como são chamados pelos profissionais de saúde. Sim, sim, tem marmanjo barbado correndo de agulhada. Vamos descontar os casos em que as pessoas tem argumentos aceitáveis, por exemplo, a pessoa fica receosa de se vacinar quando ouve boatos sobre reações adversas, sobre lotes problemáticos...
Mas existem os casos de total falta de argumento, a pessoa diz que não irá se vacinar porque “não precisa”, “tem uma saúde de ferro”, “não tem tempo”. Sinceridade só naqueles que admitem de uma vez: não gostam de agulhas. Justamente com estes fica difícil contra-argumentar, se o fulano disse que não precisava se vacinar tem como se apontar dúzias de motivos para fazê-lo, e para o medo, qual argumento usar?
As pessoas são esquisitas sem dúvida. Enquanto algumas exigem longas conversas sobre a necessidade e a importância da vacinação, outras exigem paciência para convencê-las de que não estão no grupo alvo da campanha, é preciso aguardar a idade certa, a extensão do privilégio a novos grupos alvos, procurar a rede particular...
Guardar e encontrar as carteiras de vacinação, sair de casa, aguardar em filas longas, arregaçar as mangas, estas são atitudes de pessoas precavidas e preocupadas não só com a própria saúde, mas também com a saúde de todos.
Para esclarecimento, passou o meu medo de agulhas, entendi que a picadinha no braço é um custo pequeno em comparação a adoecer, gastar com remédios, ir para um hospital. Além do que, ter medo de vacina é coisa de criança.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Dedos podres ou Os eleitores que não sabem escolher

Conhecem aquela história de pessoas que possuem os dedos podres? Como as mulheres que dentre dúzias de opções escolhem somente os homens mais complicados, ou o consumidor pé frio que escolhe sempre as verduras estragadas, quem só compra gato por lebre e os que escolhem sempre as piores amizades.

Pois é, o Brasil é um país de eleitores com os dedos podres. Para nós, brasileiros, não basta sair nos jornais que um político candidato às próximas eleições está envolvido em falcatruas para que não votemos neles. A cada nova eleição a população elege e reelege figuras suspeitas com ficha corrida, histórico de pilantragem e até mesmo criminosos perigosos, acusados de pedofilia, tráfico e o diabo a quatro.

Está sendo aprovado o "Ficha limpa", medida jurídica para impedir os brasileiros de se tornarem vítimas de um dos seus maiores defeitos, o dedo podre na hora de escolher seus representantes políticos.

Eu me pergunto qual classificação dar a este eleitorado míope, aparentemente desprovido de qualquer senso ético e inapto a julgar por si mesmo quais candidatos não merecem confiança. Nossa incapacidade de escolher direito obriga-nos a criar leis para garantir que se cumpra o óbvio: não escolhamos o pior à disposição.

Pergunto-me ainda até que ponto os nossos veículos de comunicação em massa estão cumprindo seu papel de alertar a população sobre a ficha corrida dos candidatos em todas as partes do país. Pelo que vejo, a realidade do nosso país não está bem retratada em nossos jornais e telejornais. Os mistérios sobre o nosso sistema eleitoral, sobre os jogos de interesse que decidem as eleições, sobre os currais eleitorais e trocas de favores permanecem omitidos pela imprensa, esquecida de sua responsabilidade social para com os telespectadores, provavelmente comprometida por seus patrocinadores.

Imagino que daqui para frente os políticos de "Ficha suja" serão obrigados a procurar substitutos submissos e sem ficha corrida para indicarem como seus sucessores. Aí é que está, se não somos capazes de escolher bem sequer quando o óbvio salta-nos sobre os olhos, quanto mais em ocasiões em que os defeitos estejam mascarados.

Daqui para frente seremos obrigados a prestar a atenção no que nos dizem os candidatos durante o horário eleitoral para sabermos se estão dizendo coisa com coisa? Sim, pelo que parece, precisamos quitar este débito com a nossa democracia.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Cérebros piolhentos

O supra-sumo da invencionice divina foi o cérebro humano. Colocado no crânio de um primata tão piolhento quanto todos os outros, esta magnífica máquina orgânica de gerar idéias e armazenar memórias alçou a existência careta e sem novidades da vida sobre o planeta Terra aos píncaros de uma existência cujo destino é desconhecido.

Sem cérebro os outros animais do planeta não são capazes de fazer nada além do que foram programados a fazer. Os animais não modificam o ambiente em que vivem, não jogam lixo no espaço, não esculhambam com o clima, não contaminam os solos ou envenenam os mares. Nós, seres com um cérebro pensante, somos dotados da capacidade de aprender e ter curiosidade, por isso nunca conseguimos deixar as coisas no lugar em que encontramos. Somos fascinados por desarmonizar o que já nasceu harmonizado e experimentar maluquices das quais mal desconfiamos das conseqüências para nós e para todos. Sinceridade? Não nos preocupamos com as conseqüências.

Parece que Deus se enganou um pouco com o brilhantismo de sua invenção, Ele achou o cérebro “aprendedor” suficiente para dotar a humanidade da capacidade de progredir e se tornar algo melhor. Estava enganado, o Iludido. A Humanidade aprende muito devagar e desaprende rapidinho. A possibilidade dos 6 bilhões atuais de primatas cerebrados sobre o globo aprender novos hábitos de vida que nos poupem da extinção total é distante. Nosso fascínio por inutilidades e mesquinharias é maior do que nossa capacidade de conservação.

É justamente esta a beleza da nossa existência piolhenta: não saber o que virá depois. Conquistaremos o universo e povoaremos outros mundos para esculhambarmos ou aprenderemos a prolongar a vida útil do nosso próprio planeta? Nossos cérebros são magníficos ao ponto de solucionar esta equação vital?

Terá graça desmerecermos o ato do nosso Criador de nos fazer caóticos e autodestrutivos para nos rebaixarmos ao nível das outras formas de vida sem inteligência que conseguem viver em harmonia com seu habitat?

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Espécimes longe de extinção


Ultimamente eu tenho lidado com um crescente número de pessoas mentirosas. “Normal”, você deve estar pensando, “mentirosos existem em grande número desde sempre”. Concordo. Por ser uma pessoa de natureza desconfiada, nunca descarto a possibilidade de que as pessoas não sejam o que aparentam e de que elas podem estar mentindo ou omitindo partes da verdade, feliz ou infelizmente, eu sou assim. Chame-me desiludida, pessimista, negativista, o que eu sou não vem ao caso, interfere apenas na maneira com eu lido com a informação, seja ela, tenho convivido com um número maior de mentirosos.
Faz diferença a minha posição de esperar sempre o pior das pessoas? Faz alguma. O tempo gasto em surpreender-se com a descoberta deste vício, a mentira, por exemplo, em mim é curtíssimo. É como se eu já esperasse por aquilo ou coisa pior. Falta-me a indignação recorrente nos que mantém maior fé na idoneidade das pessoas, sobra o tempo para observar melhor o comportamento dos espécimes – mentirosos – em ação.
Reparei vários pontos importantes sobre o comportamento dos mentirosos observados, alguns deles quebram certos mitos divulgados sobre tais espécimes. Percebi que o mentiroso é pouco inteligente. Muita gente acha que para criar uma versão alternativa de fatos é necessário ter muita imaginação. Bobagem, o mentiroso procura o caminho mais rápido e óbvio para suas mentiras, geralmente, ele improvisa as mentiras o que prejudica a verossimilhança, sua capacidade de raciocinar com velocidade o bastante para inventar mentiras sem furos é pequena nestes casos. Sem contar o fato de que o mentiroso quase nunca é especialista naquilo sobre o que precisa mentir, a falta de conhecimento técnico o desmascara na frente de qualquer um que tenha o mínimo conhecimento verdadeiro sobre o assunto.
Percebi ainda que os mentirosos são muito temperamentais, escolhem suas vítimas conforme suas afinidades pessoais. A parcialidade na emissão de suas lorotas os denuncia. Quem além de um mentiroso descarado descreveria com despeito na voz coisas que não ocorreram como se elas tivessem ocorrido?
Além disso tudo, o mentiroso quase sempre é covarde, jamais revela a sua inimizade para as pessoas pelas quais nutre algum ressentimento, sua arma é a mentira porque é incapaz de confrontar o seu alvo e lutar com armas honestas. E o mais alarmante, esses espécimes vomitam a sua peçonha quase sem sentir, não se dão conta do mal que espalham, são praticamente doentes contagiosos sem consciência de seu estado epidemiológico.
Recomendo como remédio eficiente para repelir estes espécimes a utilização de grandes doses de franqueza e sinceridade de opiniões, de preferência com muitas testemunhas oculares e auriculares, para garantir que o seu veneno não subverta o antídoto em agente corrosivo e o lance sobre a sua pessoa. A distância também seria uma boa recomendação, quando não for impossível.
Fica o alerta: conheçam o inimigo e entendam suas fraquezas.

sábado, 5 de junho de 2010

"A Copa do Mundo não acabou ainda?"

Essa é a pergunta que faço e refaço todas as noites quando desperdiço alguns minutos da minha vida em frente à televisão. O meu marido, pacientíssimo, responde-me: "Faltam tantos dias para ela começar." Pfff! Então, por misericórdia, por que o noticiário vem me incomodar com obsessivas notícias sobre este assunto tão desinteressante para mim? Será, meu Deus, que eu sou a única pessoa dentre as milhões neste país que não está nem aí para o que vai acontecer nesta Copa ou em qualquer outra? Serei a única opiniosa pessoa a julgar a "paixão" pelo futebol uma total falta do que fazer e do que pensar do nosso povo?

Justamente em ano de eleições presidenciais, os jornais estão mais preocupados em discutir e entrevistar as pessoas sobre o que elas acham sobre os craques da bola. Engraçado é que eu não vejo ninguém colocar o microfone na cara dos transeuntes para saber o que eles acham sobre Serra, Dilma e Marina. Será que o povo possui opinião formada sobre quem deva governar este país nos próximos 4 anos? Mas a taça do Mundo, todo mundo sabe para quem deve ir...

Entre uma bola e outra já ouvi rápidas declarações de alguns presidenciáveis que os descartaram de minhas opções de voto. Mas, e os eleitores mais indecisos do que eu? Estão conseguindo entender que cargas dágua estão falando os candidatos na televisão e no rádio? Creio eu que as frases cáusticas do técnico da seleção causam mais sensação entre o eleitorado nacional. Aliás, só pelo fato do Dunga não fazer doce com a imprensa brasileira, ele já ganharia o meu voto.

Nem vou falar dos candidatos ao legislativo, estes não existem e pronto. Vão se eleger na base da boca de urna, das dentaduras e dos outdoors. Ganhar pela propaganda, porque se depender das propostas... Nada neste país causa estranhamento, pois se ex-presidente tirado por impeachment consegue se eleger senador da república nada se deve estranhar, nada.

O verde amarelo segue enfeitando o nosso ano eleitoral, preenchendo com sons de cornetas e gritos  de hola os noticiários.

Franco

“Em terra de cegos, quem tem um olho é rei. Mas no território dos miseráveis reina o maior miserável de todos.”

- Todo mundo o chamava de Judeu, resquícios de um anti-semitismo arraigado, mas ele não era judeu. Era católico de nascimento e ateu por opção. Não cabia Deus em suas filosofias de mundo, muito menos óbolos, dízimos ou ofertórios. O único culto que aprendeu a presidir foi o culto à sua própria pessoa: os filhos pródigos de Vancouver alquebrados pelas orgias acabavam por fazer peregrinação ao seu santuário, depositavam a seus pés os pequenos mimos, em troca recebiam as dádivas monetárias necessárias para financiar mais uma noite de farra, para pagar a algum agiota e preservar os ossos dos joelhos, havia aqueles que usavam as dádivas para alimentar mais uma noite de vício.

O seu templo era um grande balcão na zona mais ordinária da cidade, um pequeno escritório no hall de entrada para a secretária, no primeiro andar, passando por uma estreita escada em espiral estava o seu altar de atendimento (8 horas por dia, de segunda a sábado) e os terceiro e quarto andares serviam de depósito. Tudo seu, comprado com dinheiro suado e contado.

Começou com uma lojinha pequena, um balcão e duas prateleiras, guardava o dinheiro em uma gaveta, consertava relógios. Era relojoeiro por profissão, aprendido o ofício ao pai, e o pai ao avô. O que fez a sua fortuna foi o seu enorme senso de oportunidade e o seu tato para analisar as pessoas, um empreendedor nato. Sua aprofundada análise de mercado lhe mostrou exatamente onde investir: na necessidade alheia. Tal matéria prima jamais havia de faltar, sempre há uma prostituta, ou um viciado, ou um gatuno querendo se livrar de algum objeto de alto valor sentimental e médio valor monetário.

É assim no ramo dos penhores, você precisa de um olho avaliador muito rápido. Primeiro, deduzir quando pode conseguir pelo objeto no mercado, depois analisar o grau de desespero do portador do objeto, terceiro, ser um perfeito blefador.

Nunca oferecer mais do que vinte por cento do valor real e nunca ultrapassar os quarenta por cento. Por último, ser inflexível. Não há espaço para misericórdia nesse ofício.Os clientes variam em figura, a maioria se torna dependente. Iniciam a via-sacra trazendo uma coisa velha e sem uso, algum cacareco de família, outros trazem coisas realmente valiosas mas que não lhes servem de nada. Na fase crítica, trazem televisores, móveis, a pia do banheiro. E há os que oferecem o corpo e os serviços em penhor. Desses Franco não gostava na juventude, a idade o ensinou a apreciar qualquer oferecimento, vinte anos de profissão ensinam algo a um homem.

- Já pode atender o próximo cliente, Franco?
- Mande subir. – Lúcia vinha sendo sua secretária há mais de um ano, boa garota. Em vários sentidos.
O cliente era Gina, uma magricela viciada em anfetaminas, roubava objetos da família para trazê-los a Franco.
- Quanto você me dá? – a moça perguntava fungando e contorcendo os lábios, como se estivesse aguardando um prato de comida.
- Você roubou de novo, linda? – Franco perguntava em tom paternal, como um padre preparando um sermão moral.
- Não.
- Jura?
- Eu juro.
Passou os dedos desinteressadamente pela porcelana do prato. Jogou três notas de vinte sobre a mesa. Estava sendo generoso, Gina era uma cliente promissora. Seria bom para ela agora, e indispensável em um futuro próximo.
- Foi a última, Lúcia?
- Foi sim, Franco.
- Pode fechar tudo, então.

Lúcia foi uma de suas clientes, mãe doente, precisava de dinheiro para os remédios. Na terceira visita ela não tinha mais do que a roupa do corpo para oferecer e ainda precisava curar a velha mãe. Então Franco recusou a roupa e ofereceu uma boa quantia pelo conteúdo do vestidinho xadrez. Lúcia era uma boa garota, resistiu o quanto pôde. Talvez se Franco não fosse quem fosse, tivesse sentido pena das lágrimas injuriadas, ou se Lúcia não tivesse um traseiro tão perfeito, ele não o tivesse desejado em demasia. Como gostava de repetir, toda injúria tem seu preço e seu tempo certo. O amor de Lúcia pela mãe foi maior do que o seu pudor, a boa vontade de Frank também, pagou todo o tratamento da velhinha e empregou Lúcia bem perto de si para apreciar sua beleza sempre que lhe desse vontade. Olhava agora com nostalgia para aquela silhueta perfeita, saudade da época em que ela lhe despertava a cobiça.
- Mais alguma coisa, Franco?
Franco se aproximou o bastante para sentir o cheiro dos cabelos castanhos da secretária.
- Não, docinho. Vá cuidar da tua mãe.
Mais um dia de serviços prestados aos desesperados daquela metrópole.


(Franco é um dos meus personagens preferidos, o primeiro do gênero masculino. Os episódios em que ele aparece devem ser resultado das minhas leituras do Rubem Braga, do Jorge Amado, do Dalton Trevisan e sem dúvida nenhuma do Nelson Rodrigues. Políticamente incorreto e amante das imoralidades é muito divertido escrever para ele. Espero que ele angarie mais simpatias do que antipatias.)

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Embriaguez

Deixou o estabelecimento e seguiu reta até a primeira esquina, local onde se deu conta da sua embriaguez. Cinco litros de vinho tiram uma pessoa dos eixos! A sua cabeça havia esquecido o álcool agindo sobre os reflexos, mas o seu corpo não foi capaz de ignorá-lo. Zanzou, cambaleou e só não caiu porque achou a escora do poste de iluminação. Ingratamente brindou o pé do poste com esguichos de vômito e esqueceu-se de lembrar o quão disciplinado era o seu suco estomacal, que poderia muito bem ter se exteriorizado após os rodopios no restaurante, mas não o fez. Prova incontestável da seletividade de sua bílis, escolhia sempre os locais mais limpinhos para se espalhar e adivinhava as opções éticas e políticas de sua dona, recusando misturar-se com a gentinha filadora de bóia do restaurante de esnobes. Sem dúvida o seu estômago era mais elitista do que ela própria.
 

Ainda apoiada ao poste e vendo o mundo girar lembrou-se do milagroso “torradinho” que levava sempre consigo no embornal. Não era nenhum alucinógeno, não se preocupem. Era só uma receita de família que levava imburana, gergelim, ginsen, barbatimão e erva-doce, tudo muito bem tostado em um braseiro para retirar o óleo e pilado em seguida para obter o pó, que ia amarrado em forma de patuá. Uma cafungada só no odorífico balsâmico daqueles extratos naturais e a zonzeira passou.
 

Nesse momento de lucidez que procedeu a embriaguez, luminosa como um raio cruzando o céu noturno e terrível como a descoberta de um novo mundo, uma monstruosa realidade apresentou-se aos seus sentidos. Os rompantes de euforia que antecederam a sua saída do restaurante desembocavam agora em rios de desespero. Um segundo de realidade é capaz de esmagar o indivíduo, e naquele segundo específico e especial, fatidicamente, Alice foi esmagada pela contemplação de nada além da mais verídica e factual verdade: ela estava completamente só. 

Restavam apenas dez quilômetros de caminhada até sua casa, para encontrar o último de seus parentes recém-morto enterrado em uma cova de terra ainda fofa e uma máquina de escrever que datilografava sozinha frases inúteis.

Para não cair no patético de arrancar os cabelos, tomar veneno ou virar freira seu cérebro deu ordem para ir pensar em coisas mais amenas. 



(Da mesma personagem de "Estudos Cerebrais" , "Jantar" e "Fuja")

Jantar



Aceitou sem receios acompanhá-lo de carro até o local da alimentação, surpreendendo-se apenas porque não estava indo  para um restaurante, mas para um apartamento. Fosse ela uma destas almas mesquinhas que julgam mal aos outros,  poderia tecer dezenas de pensamentos injuriosos, “o sovina não me paga um jantar”, “o safado planeja jantar-me”, “o  estróina deseja jantar-me sem me dar de jantar”. Não pensou, todavia, nada disso. Pensou que uma pessoa que alimenta  a outra cumpre seu papel no universo. O professor era duas vezes provedor, provia alimento à alma e ao corpo. 

Receou quando foi indagada sobre o nome. O nome era uma parte de si que julgava ser muito íntima para ser dita ao léu. A partir do nome é possível conhecer todo o futuro e passado de uma pessoa, descobrir-lhe medos e sonhos. Deus havia proibido o povo escolhido de chamá-lo pelo verdadeiro nome, e o segundo mandamento nas Tábuas da Lei diz: “Não usar O santo nome em vão”. Se entregasse o verdadeiro nome, colocaria o destino inteiramente nas mãos do homenzinho. 

Disse apenas uma parte do nome:

- Alice. - Com esta metade revelada protegia a metade oculta, protegia o verdadeiro eu.

Como demorava o homenzinho para aprontar um prato tão simples! Em sua casa, Alice usaria o tempo que ele estava gastando indo pilar o trigo no pilão, extraindo a farinha, preparando a massa, colhendo e esmagando os tomates para o molho, cozinharia a massa, buscaria os temperos na horta e picaria tudo em miúdo até que a massa entrasse no ponto, e já estaria servida à mesa.
- Aqui está, senhorita! Espaguete à bolonhesa, à minha moda.

Alice vomitou aos pés da mesa, frente à visão das bolotas de carne.

- Perdoe a minha descortesia, mas sou vegetariana!

Evitara dizer antes, quando fora indagada sobre coxas e barrigas, para não magoar o anfitrião. Mas não suportou o engulho quando sentiu o cheiro da carne. Criava animais para retirar os insumos e vender as crias, mas não tocava nas carnes.

Ainda tentou separar de lado os pedaços repugnantes de células animais, mas o sabor devia estar impregnado na massa, resumiu-se então a remexer com a ponta do garfo, fingindo interesse no prato.

Comer era algo tão pouco especial para toda aquela gente habitante do pequeno planeta sem idéias, comeriam qualquer porcaria, comeriam até a si mesmos, na falta de petiscos com alto teor de gordura e açúcares. A comida dos outros habitantes daquele pequeno mundo parecia-lhe morta, sem cor, sem movimento. Tinha gosto de coisa velha e embolorada, escondida da luz, desfacelada pelo contato com o ar, conservada em química para não apodrecer fora dos intestinos.

Alimentar-se naquele planeta era perigosíssimo. Precisava voltar para casa.

(Adaptação de texto escrito para um roleplay, o estranhamento frente ao hábito do "outro", como eu já coloquei, o problema são os outros, não nós.)