segunda-feira, 29 de julho de 2013

Vexame

Tenho raiva de pessoas que escrevem versos de amor, as desprezo. O que elas pensam? Que são belos? Belos como seus amores remelentos.

Das pessoas que se fazem passar por loucas tenho pena. Pena dessa necessidade boba de estar na moda do último século literário. Os loucos saíram de moda. Quer ser fora de moda? Seja então, mas sem fingir loucura. Acorda, loucos não escrevem em blogs, a não ser que seja para passar receitas de bombas.

Fico enjoada com quem vomita suas perversões na folha em branco. Peitos, coxas, ânus. Tem algo novo? Inventaram novas perversões? Existe ainda quem não tenha lido cú em qualquer parte? Sem falar que perversões foram moda no século XIX. Quer dar uma de Bruna Surfistinha, esquece. O Marquês de Sade veio primeiro, e ele tinha ideias políticas ao menos.

É preciso que seja tudo tão descompromissadamente tolo? Banal? Vulgar.

Vou lhes ensinar o que ainda vende em literatura.

MENTIRAS.

Sabes contá-las? Sabe fingir? Não me dê uma de Pessoa, finja apenas.

Eu gosto de fingir que mato as pessoas que odeio. Sublimação pura. Ritual sacrossanto. Morrem todas, feito formigas esmagadas.

Mas não ache que sou perfeita. Eu tenho dos meus vexames. Eu faço versos solitários, do ser pálido que espia o abismo. By Fausto, Goethe, ultrarromantismo canalha de quem não sabe mentir lorotas alegres.

Porque alegria e boas esperanças, mensagens brancas em pés de pombas, poupem-me, ficaram para as donas de casa.

RACIOCINAR.

Racionalizar, desenhar com régua, medir com compasso. Eis o que nos falta. Sem nos fazer passar por psiquiatras ou loucos. Vamos tentar nos fazer passar por Cristo, Júlio César, Gandhi e ver no que alteramos o curso da história.

MODO DE FAZER.

É o que vende. Ninguém mais sabe fazer nada, ensinar os burros parece que vai ser a profissão dos próximos dez séculos.

NÃO SE PERMITA SONHAR.

Apenas minta, ok? Ou isto aqui começa a virar diário de infância, cápsula do tempo, viagem de LSD. Focalize a ilusão, tudo novo e diverso, de preferência desagradável e plausível, ou agradável mas implausível, e não retire a pena do papel até finalizar o mito.

NÃO SEJA DEMOCRÁTICO.

Isso não rende, não vende, não edifica. Pregue a obsessão pelo futuro. Nada de aderir às novas correntes estéticas. Morra velho e gagá.

CALA-TE.

A melhor forma de não dar vexames é ficar calado. A boca aberta é chamariz do demônio.


Claustro

O mundo nunca foi tão grande quanto se supõe que seja para ela. Havia cercas em toda parte erguidas sob as mais variadas desculpas. A violência das grandes cidades, a marginalidade dos subúrbios paulistanos, a superproteção materna.
Depois teve a timidez, o horror às multidões, a dificuldade em fazer amizades, aliás, a dificuldade em cultivar amizades. Um pequeno príncipe às avessas, jogava sal em todas as raízes fraternais que pudesse perceber. Poucos a cativavam, na verdade, contentava-se com a observação dos outros mantida certa distância mínima de segurança.

Assim, o mundo ia tomando o restrito tamanho das obrigações inadiáveis, estreitado pelas relações sempre evitadas. Duas linhas retas traçadas no chão da cidade resumiriam todo o seu universo de movimento. Não havia, portanto, pessoa mais previsível.

Isso se não levarmos em conta que o mundo é bem maior do que se revela na matéria. Acima do espaço existe o tempo, e nele o tempo psicológico, no qual anos podem ser vivenciados em minutos. Tempo cujo conteúdo não se deixaria resumir por poucas laudas de explicação. E havia o espaço dentro do tempo, aquele capaz de nos levar à toda parte, atrás dos sons e formas insinuadas; imaginação, arriscariam. Pensamento, liberdade, sonho. Itens tão escassos no mundo de hoje, acorrentados pelas ideias preconcebidas apregoadas por todos os meios comunicativos. Mortas a curiosidade e a criatividade do mundo moderno, quem as consegue cultivar em vasos escondidos é dono de inestimável fortuna.

Ela as possuía. Guardava em segredo esses portais para outros mundos dentro de seu silêncio, mesquinha, como sempre, com aquilo que deveria revelar aos outros.

Quem a via, contudo, não podia supor. Deixava transparecer apenas o silêncio mudo, os passos lentos e repetitivos, o ir e vir cronometrado das obrigações cumpridas a contra gosto. Mas, por dentro, ela sabia. O mundo não tinha limites.

A casa da morte



Pra encher a barriga
voltava do mercado com sacolas recheadas de verduras brancas.
A médica recomendava usar calcinhas brancas e passá-las com ferro branco.
Pra evitar as doenças brancas que a chuva traz.

Mas o destino branco não falha,
desaba branco sobre os telhados sem cor.

É inverno e a neve e o frio chegam como sempre, negros
Secam os olhos dos velhos chorosos,
de lágrimas brancas mortiças,
e as levam para o norte na direção da morte.

A casa da morte, velha morada úmida, cercada de raízes ocas
abriga a todos os desgarrados da vida,
a terrível e malvada que a ninguém perdoa.

Abriga também as lágrimas brancas, coletadas pela neve sempre negra que veio do sul.

quarta-feira, 17 de julho de 2013

A voz

Devíamos ser livres para dizer o que quiséssemos. Mas, se nem o nosso pensamento é livre como a nossa voz pode ser? Volta e meia nos pegamos tendo medo das nossas ideias, por serem diferentes demais, ousadas demais. Achamos que a regra é pensarmos todos igual. E assim não somos livres para dizer o que desejamos, sob pena de sermos tomados por loucos.

Então nos calamos, permanecemos fechados com nossas próprias ideias. Por que tudo o que dizemos e pensamos precisa estar certo? Por que não podemos estar errados? Será que é tão difícil sermos aceitos com nossos erros, nossas dúvidas, nossas maluquices ao ponto de não merecermos atenção?

É essa a individualidade perdida, eu acho. Se é que o que eu acho é importante. Dizem que não é. Mas eu sigo achando. Penso tudo ao contrário, penso torto, contradigo por vingança, repenso desnecessariamente. Não me dão a voz e eu me vingo com o silêncio. Ou eu digo o que desejo ou digo nada. Assim está bom para vocês? Falta a liberdade para discordar, exerço a liberdade de não reforçar.

Vocês não acreditam em mim, não acreditarei em vocês. Vocês riem de mim, rirei de vocês. O seu desprezo me concede a liberação de que preciso para construir uma alternativa ao desprezo. A fuga. Sim, agora eu entendo os silêncios e ausências de Lispector, as pseudo-fugas. Aquelas eram pessoas que não eram, por isso precisavam fugir. Mas, fugir não é covardia? Eu não quero ser covarde. Muito pelo contrário. Eu vou ficar e confrontá-los com meu desprezo. Manter-me-ei sã, lúcida, inteira, presente, produtiva. Quando vierem me perguntar o que achei de tudo, crentes de que eu responderei satisfatoriamente, eu direi a verdade. Nada me agradou.

Não me deixaram falar, duvidaram de mim, pensaram que eu tinha deixado de pensar, mas estavam todos enganados, eu ainda pensava, escondida, sem que vocês soubessem. 

Eu os enganei, mantive meu exterior camuflado conforme a moda do tempo, e ninguém foi capaz de dizer que eu estava achando tudo ridículo. Ou perceberam, mas fingiram não ter percebido, porque isso os incomodava demais.

quinta-feira, 11 de julho de 2013

As Três Torres ou Os desenhos de Alice

Capítulo anterior ao anterior, em que nossa heroína sem dedos projeta o embosteamento de uma Torre de Marfim

- Muito bom você perguntar a minha sugestão. Antes de mais nada, gostaria de parabenizar pela iniciativa, Chevalier, a intenção é muito boa. Apenas os meios que são por demais modestos. Está certo que a internet é uma ferramenta de grande visibilidade, mas ao mesmo tempo é um local onde todos são anônimos. Para manter viva a chama do teu movimento é necessário mais do que uma centena de simpatizantes que venham a lhe dar um retuíte ou distribuam a campanha em outras redes sociais. Um grupo de ativistas se faz com pessoas unidas sob uma forte convicção e identificação. E, especialmente, a ação física, o agir-interagir no mundo é o que dará ao movimento a notabilidade necessária para alçar a atenção da imprensa internacional. Sim, porque a visibilidade local não é o suficiente. Edward Shaw está acostumado com pessoas apontando os seus podres, tenho quase certeza de que ele considera essas pessoas quase como amigas suas, pois elas ajudam a manter seu nome em relevância. Precisamos de um grande ato simbólico que atraia os olhos do mundo sobre nós, que faça o mundo se sentir responsável por nossa desgraça e solidário com a nossa indignação.

Alice tirou do bolso um desenho feito a lápis. A gravura possuía capricho de desenhista mesclado ao zelo do projetista cujo conteúdo perturbava pela idéia em si mais do que pela inverossimilhança dos meios disponíveis para realizá-lo. O desenho dispensava explicações, era feito em forma de história em quadrinhos, com três cenas distintas. Tratava-se da Torre do Marfim em primeiro quadro, um monte de esterco no segundo quadro e no último quadro a Torre de Marfim coberta pelo esterco de alto a baixo, colorido este último quadro de um marrom bem sujo, próximo ao vermelho, com uns pintassilgos amarelos muito suspeitos.

- Vamos bostear o prédio do Shaw de alto a baixo. Depois disso ele não terá onde enfiar a cara de vergonha, vai se desculpar diante do público e se entregar para sofrer as sanções da Justiça. Promoveremos três dias de ocupação, pelos meus cálculos, umas 3 mil pessoas reunidas por três dias produzirão insumo mais do que suficiente para cobrir a superfície externa do prédio centímetro por centímetro.

A explicação de Alice estava apresentada, somente um imbecil não a entenderia, pois se até ilustração ela se deu ao trabalho de fazer para os menos favorecidos de inteligência não ficarem fora do assunto.

 Restava saber se o Chevalier era homem de audácia e visão e estaria disposto a elevar o grau de comprometimento com a causa ou se era ele mais um blogueiro cheio de papo que tem medo da tropa de choque. E claro Alice ia testar se a vampira de salto alto era uma lambe-saco do Príncipe.


O poder das massas by Alice C.

Capítulo em que a nossa heroína vampírica, negando qualquer correlação com as xaropadas dos crepúsculos por aí vigentes, mostra-se uma animada organizadora de manifestos públicos.


Se *Alice C. fosse dessas pessoas extremamente inseguras teria ficado incomodada por ninguém elogiá-la pela perfeição daquele desenho feito pelas “mãos” de uma mulher sem dedos. Mas não, Alice entendia perfeitamente o desconforto das pessoas de falarem na sua deficiência, mesmo que para elogiar a sua perícia de desenhar segurando o lápis entre os lábios ou clicando com o toco do dedo indicador no botão do mouse. A palavra de ordem nos meios educacionais é “inclusão”, a qualquer custo boa parte das vezes, mas não deixa de ser inclusão. A nossa heroína estava grata por este sentimento de recebimento e inserção de seus futuros companheiros de ocupação, afinal, estava claro que daquelas cabeças subalternas e viciadas em só dizer SIM para tudo que o sistema lhes impunha não poderiam sair ideias lá muito revolucionárias.


A empolgação do **CHE-valiê, em especial, era animadora. Ele tinha uma cara simpática e que transmitia confiança, e tinha dedos, o mais importante de tudo, o público tende a prestar mais atenção e credibilidade a quem tem dedos para lhe falar. Até quando essa pessoa não é boa em fazer story board das manifestações futuras.

Mas ainda havia o problema de se criar problema onde não há problema. E foi o que Alice disse aos seus companheiros.


- Não criem problema onde não há. O único obstáculo é o de nos dispormos a fazer e acharmos outros 2.997 dispostos ao mesmo. O poder das massas é intransponível, somente a ignorância impede que o povo comande. Chegaremos em silêncio, de maneira pacífica, de dois a dois. Quando pedirem para sairmos, nos sentaremos no chão e diremos que vamos esperar. Levaremos comida, água, agasalhos. Quando não caber mais gente na recepção, sentaremos no jardim do lado de fora. Então comeremos e beberemos e cantaremos – e nesta parte Alice estava sendo sincera, ela podia muito bem comer e gastar uns pontos de sangue para fazer a comida chegar até a saída para fazer parte do movimento como todos os outros – e a imprensa estará lá para nos filmar. E comeremos mais, até que o milagre aconteça e nossos intestinos comecem a funcionar. Então, cada um de nós, um a um, ou vários de uma vez, defecaremos, em jornais ou no que estiver disponível e passaremos os nossos excrementos para os que estiverem do lado de fora. Estes por sua vez, começarão o trabalho de decoração da Torre, a fachada embaixo. Olharemos a rua através de nossa obra.

 Continuaremos a comer e a esperar que os nossos intestinos funcionem – também podemos levar algum excremento conosco, só pra fazer volume, ninguém vai reparar na quantidade, o que importa é o simbolismo do ato. É claro que ***Shaw lavará a fachada depois, ninguém está dizendo que ele não vai. É claro que muitos de nós seremos presos. Então, alguém acha que a liberdade é impune? Talvez nos batam, torturem, prendam, caluniem. Mas não se enganem, nossas ações não serão esquecidas. As palavras ditas nunca são em vão. É conformismo achar que devemos nos calar porque seremos censurados pelo que dissermos. Não somos crianças que esperam que Edward Shaw nos aplauda por nossa coragem, ou que a sociedade nos dê uma medalha. O que faremos terá conseqüências. Somente os irresponsáveis não preveem as conseqüências de seus atos. Seremos punidos, mas a punição não apaga o ato em si. O que fizermos estará feito e o que dissermos estará dito.

Alice estendeu a mão para o CHE-valiê, queria cumprimentá-lo mais uma vez por sua iniciativa corajosa de se rebelar contra o que achava que estava errado.

- Vamos arregimentar, não somos os únicos que enxergam as coisas como são. Outros vão aparecer. Manterei contato por email. A-l-i-c-e-c.@gmail.com.
E olhando para a ****vampira loira:


- Você tem Facebook?


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* Pra quem não conhece, Alice C. é personagem-narradora de vários enredos aqui do Literatices. É uma vampira recém transformada que luta para se adaptar a sua nova condição de não estar viva.

** CHÊ-valiê é um personagem deste trecho em específico, um ser humano muito distinto pelo visto, destes com ideologias e tudo. Gente fina.

*** Shaw é o vilão desta trama. Príncipe entre os vampiros, manipulador da mídia, da indústria da construção, da indústria química e tudo o mais que houvesse para ser dominado naquela região geográfica. Leia-se: tirano a ser combatido.

**** A vampira loira é um personagem super interessante, que porém, neste trecho é completamente negligenciado empatado de se desenvolver pelo discurso inflamado da Alice.