quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Era uma vez um burrinho


Ana Castro 

Era uma vez um burrinho que nasceu feio feito a necessidade. Não daquelas necessidades bobas, de comprar Play Station 2 ou bicicleta de marcha. Necessidade mesmo, daquelas que você passa quando não chove e o rio da sua cidade seca e você precisa tomar água de uma cacimba. O burrinho foi criado no interior, era gordo, ao ponto de ninguém perceber que era feio. E ele era bom, carregava tudo que lhe pediam. O burrinho pensava que tudo poderia ficar pior se não houvesse mais a carga, porque o dono lhe dava comida só por causa da carga. Ele quebrava as costelas carregando as pedras que o dono mandava e o dono retribuía com a comida. Não se importava que cada dia a carga ficasse mais pesada e a comida mais pouca, contanto que houvesse carga, pensava, haveria comida. E água.
Na cabeça do burrinho, penso eu a narradora, esta devia ser a vida de todos os burrinhos, ele havia nascido para ser um burrinho cargueiro, que comia devido à bondade de seu dono. E à carga.
Mas o mundo, como todos bem sabem, não se compõe somente de burrinhos e cargas. O mundo é grande e cheio de perigos e surpresas. Um dia parou de chover, quer dizer, ficou sem chover por muito tempo. Anos. Dizem que foi por causa do desmatamento das matas ciliares, outros dizem que os gases liberados pelas vacas foram tantos que o buraco da camada de ozônio se tornou grande demais, a temperatura da terra mudou e o clima junto. Aí parou de chover. Quer dizer, ficou sem chover por muito tempo. Anos.
Sem chuva, ninguém mais precisava de pedras. O dono do burro perdeu o emprego das pedras. Ele vendeu o burro para dar de comer aos filhos, e o burrinho trocou de sina. O novo dono era dono também de uma charqueada. Lá se foi o burrinho, triste, preso na carroceria de um caminhão velho, junto com vários outros burrinhos de todas as cores e procedências. Iam para charqueada, que como todos bem sabem, trata-se do local onde se entra burro e sai-se charque. Ali, na estrada cumprida, o burrinho aprendeu que todos os burrinhos são iguais, dividem a mesma sina de animais tristes, explorados, com mais carga do que comida. Aonde iam, não sabiam, mas iam.
Chegaram. Viagem sem água, nem comida, nem sombra. O motorista manobrava para estacionar próximo à rampa de acesso. Os urros dos burrinhos incomodados formavam uma sinfonia triste de doer coração de quem ainda leva o coração no peito. Perguntas sem resposta pipocavam na mente do nosso burrinho: onde estamos? Por que não nos deram água? O que vai acontecer conosco? O novo dono precisa que carreguemos pedras? A que horas nos darão palha? Todas as respostas deixaram-se ficar sem respostas enquanto o fundo do caminhão se aproximava lentamente da entrada do matadouro. Devo aqui dizer que o destino certo do nosso burrinho e de seus companheiros burrinhos teria se cumprido não fosse a intervenção de uma força maior. Um decreto presidencial ordenava o fechamento de todas as charqueadas do Estado e a destinação imediata dos equinos, muares e asininos para um novo Ministério que acabara de ser fundado: o Ministério de Apoio Mútuo às Emergências e Desastres Naturais. Parece-me que esta nossa história ambientada em um futuro alternativo caminha para um desenlace incerto. O que não é de todo mal, pois o destino de todos nós é incerto até que se concretize.
Os burrinhos desceram do caminhão 45km a frente, equilibraram-se pela rampa bamba até um curral abastecido com água, palmas, palha e sombra para todos. No meio da noite, uma luz forte foi acesa e homens usando luvas de proteção vieram ao curral para borrifar um líquido sem cor nos burrinhos, passaram pomadas em suas feridas e trocaram as ferraduras rachadas. Os outros burrinhos eu não sei, mas o nosso ficou contentíssimo, ele entendia que estavam recebendo tratamento cuidadoso, isso só poderia significar que seriam novamente empregados. E foram.
A grande seca não atingiu apenas o negócio de pedras do seu antigo patrão, mas todo o país. Cidades com bilhões de habitantes que se amontoavam em prédios altos como as nuvens morriam de sede e fome, não havia água o bastante para gerar energia elétrica que movesse os motores de sucção de água do subsolo. O combustível fóssil se exauriu em poucos meses para aquele país que dependia de sua agricultura, agora impraticável devido à falta de chuvas (dizem que o combustível alcançou preços proibitivos, dizem até que o governo preferiu vender o combustível aos estrangeiros na mesma situação a usá-lo com seus cidadãos, mas essas histórias eram rapidamente sufocadas pela urgência do trabalho duro). No lugar de braços mecânicos e motores bebedores do óleo negro mais caro do que ouro, foram colocados braços, lombos e pernas de homens, mulheres e todo o tipo de animais de tração. O transporte era feito por animais e pessoas puxando outras pessoas, algumas vezes as pessoas e animais iam puxando as carcaças dos antigos automóveis, carregando outras pessoas ou mercadorias. Os animais giravam imensas rodas de moinhos que içavam do subsolo água para matar a sede, carregavam água salobra do mar para tanques de dessalinização e carregavam o refugo para piscinas artificiais onde se criavam peixes e outras criaturas marítimas das quais nosso burrinho nunca ouvira falar. Nas cidades, não se viam mais ônibus ou caminhões, muito menos carros pequenos, viam-se bicicletas, carroças, enormes carroças assemelhadas a barcaças sendo puxadas por 5 parelhas de touros. E pessoas, muitas pessoas, que preferiam caminhar à sombra dos edifícios colossais ao invés de cozinhar dentro deles sem refrigeração artificial. O comércio mudara rapidamente, em uma semana, o burrinho e seus companheiros não serviam para nada além da charqueada, carne barata para gente pobre comer. Na outra semana, eram mais valiosos do que qualquer automóvel de luxo.

Finalmente o burrinho sentiu-se necessário, sentiu que o que fazia era bom. E ele era bom, carregava tudo que lhe pediam. Sabia que os donos nunca deixariam de precisar da água, sempre lhe dariam um pouco desta, e teria palha e sombra. Amava os homens porque precisavam de seu trabalho, amava-os mais ainda agora: sabia que os homens também carregam as coisas quando necessitam. O burrinho pela primeira vez foi feliz e continuou sendo até o dia de sua morte.

Nenhum comentário: