quarta-feira, 22 de julho de 2015

Bonecas e o futuro

Ser Menina
Capítulo II
Bonecas e o futuro               



O jardim era um quadrado sem terra, um piso liso de cerâmica feia, cheia de padrões que gastava horas para conciliar. Sua brincadeira era caminhar pela cerâmica sem pisar no meio octogonal, somente nas partes lisas. Com os carrinhos do irmão dava para fazer uma imensa autoestrada cheia de bifurcações entre aqueles desenhos, e eles faziam. O irmão era o menino da sua vida. Havia também as  plantas de todos os jeitos, compridas, de folhas finas e largas, verdes, claras e escuras, roxas, venenosas, urtiguentas, porosas.

As sementinhas que caíam das plantas eram as colheitas das suas bonecas. Tantas bonecas, inúmeras para a sua cabeça de menina pequena. Rechonchudas, com boquinhas pequenas e rosadas, olhinhos azuis, calcinhas brancas, somente uma pitucha de cabelo no meio da cabeça lisa, ou então, cabeludinhas e loirinhas, com xuxinhas coloridas. 

Possuía uma única boneca pretinha, carequinha, o olhinho dela era azul e olhava sempre para a direita. Não era olho de vidro, era pintado. As mãozinhas eram as coisas mais perfeitas do mundo, com covinhas de bebês nas ligas dos dedos, só que os pezinhos eram tortos, ela não ficava de pé. Nenhuma das suas bonequinhas era criança. Eram todas adultas, moravam juntas por opção, não tinham pai ou mãe, e não eram irmãs. Havia os garotos, em número menor, estes dizia que eram do irmão. A maioria dos garotos não era gente, eram cachorrinhos e ursinhos, todos humanizados para melhor servir ao mundo de faz de conta.

Sentia pena de ver as suas pessoinhas sofrerem. Elas passavam frio, tinham fome, tinham sede, sofriam sequestros e vários casos de violência doméstica. Precisava estar lá para curar suas feridas e apaziguar suas brigas.

Mesmo criança, enxergava assim o mundo cheio de sofrimento e incômodos. Não se lembrava de em nenhum dia da infância ter previsto um futuro ameno. O futuro era o hoje com cara de bravo, ameaçando com coisas piores de porvir.

E nem era boneca, para ter quem lhe protegesse. Desejava o futuro somente por não ser o presente, por ser outra coisa, ausente.