domingo, 28 de novembro de 2010

O último cliente da manhã



- Quanto?
- Cinquenta.
- Cinquenta é muito pouco.
- É o que eu posso oferecer.

O velho se cala. Olha para o baralho à sua frente como se fosse um filho pequeno que ele estivesse ali oferecendo.

sábado, 27 de novembro de 2010

O adorno das damas




“Toda mulher bonita é um pouco a namorada lésbica de si mesma.” (*) Foi o que Franco pensou pela demora da moça em provar duas ou três mudas de roupa. È uma regra com raras exceções, a mulher nutre por sua imagem uma paixão narcísica, quase incestuosa. Dê um espelho a um homem e ele gasta um minuto para checar se não está nada fora do lugar. Dê um espelho a uma mulher e ela fica hipnotizada com a própria imagem, faz poses, namora o corpo com dedicação paranóica.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Despertar do duvidar




Aquelas almofadas serviram divinamente ao meu sono, despertei descansada, sem dor nenhuma pelo corpo. Até me apalpei um pouco para ter certeza de que o corpo não estava insensível ao toque e à dor.

- Aparentemente tudo no lugar. – Ponderei, dando um soco leve no joelho e rindo da resposta reflexa da perna.

- Exceto por esta coceira besta.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

A mola que move o mundo



Um dia, eu acordei, peguei um ônibus, entrei em um laboratório, recebi um envelope com o resultado de um exame e o guardei na bolsa. Na rua, não contive a curiosidade, entre uma esquina e outra rasguei o lacre e espiei o conteúdo.

 A maioria dos acontecimentos em nossa vida desaba sobre nossas cabeças, sem nos deixar saída. Destes desabamentos somos vítimas ou premiados. Ser vítima é mais simples, não exige nada por retribuição. A dádiva é mais complicada, não é uma conquista, é um presente que recebemos por razões além do nosso merecimento e esforço, exige responsabilidade.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Desejo de inconsciência




Inconsciência. Era tudo o que podia desejar. Desejava que  sua mente fosse capaz de racionalizar e fazer enxergar apenas o que fosse mais seguro para si. Desejava que  o sentimento de culpa fosse mascarado em outra coisa que  fizesse esquecer a existência da culpa. E principalmente, desejava ser capaz de justificar as ações sem a consciência de que elas eram uma tentativa de  se fazer sentir melhor consigo. 

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Além da morte dos amados



 
 


“Muitas sombras de gente já falecida ocupam-se somente em lamber as ondas do rio dos mortos, porque ele se origina de nós e conserva o gosto salgado de nossos mares. Então o rio, tomado de nojo, cria uma corrente contrária e empurra os mortos novamente à vida. Daí eles ficam felizes, entoam canções de agradecimento e acariciam o rio rebelde.”
Franz Kafka, Aforismos
 
- O que levamos desta vida para a próxima? Ouro? Roupas? Títulos do Tesouro? Acaso levamos as flores que recebemos quando aniversariamos? Vão conosco as cartas de amor que recebemos dos admiradores? Os brinquedos que nossos pais compravam? Ou será que vão as mágoas, as lágrimas escorridas, as derrotas? Vão as rugas? Vão os cabelos brancos? Vão as varizes?

Até a próxima, querido



Fátima encontra Sílvio de pé dentro da casa. Fica em dúvida se ele estava preocupado com seu bem estar ou se havia perdido o sono. Não fazia diferença, a noite já partia e um novo dia chegava. Junto com o novo dia chegava o momento da partida. 

Na cozinha, fritando os ovos com bacon, Fátima observa a cumplicidade entre o homem e o cão. Os dois pareciam dar-se muito bem, numa amizade que a deixou enciumada. Difícil competir com tanto companheirismo. Os três se posicionam na mesa do café, e Sílvio parece reticente, desanimado, aparenta mesmo estar fingindo serenidade, como se escondesse algo que a pudesse magoar.

Entrevista de emprego


Precisou esperar um pouco mais além do previsto para ser atendida, mas estava decidida a não sair dali sem conversar com algum funcionário do Bar. Sissi não gostava de voltar atrás em suas decisões ou desistir no meio de seus planos. Ela acreditava em seus instintos. Na manhã anterior, ao ler os classificados do jornal, no exato momento em que passava os olhos sobre o anúncio da Srta. Hole teve certeza que aquele anúncio havia sido colocado ali para ela. Podia não ser contratada, mas alguma coisa de importante devia estar envolvida naquela ida até ali. A espera tranqüila não era resultado de excesso de confiança ou paciência, Sissi apenas agarrava-se na esperança de não ter feito aquela investida em vão. 

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

O punhal no escuro


K. entrou no quarto com a intenção de tratar aquele homem de igual para igual, iria rebaixar-se a oportunizar que o homenzinho infeliz lhe fosse útil. Sabia que Mirael prestava serviços àquele parque durante um longo tempo, sabia também que tratava-se de um sujeito perigoso, devido a sua reclusão. Homens solitários são capazes de qualquer fraqueza. K. era capaz de conviver entre as pessoas, cativá-las e rir de suas trivialidades. Somente o tempo que suportava manter esta farsa era curto, vencido o prazo de tolerância, procurava locais mais silenciosos. Contra sua vontade, voltava a sentir falta de convívio e a mesma humanidade que impulsionava a reclusão impulsionava também que procurasse alguma convivência. As pessoas lhe pareciam geralmente insuportáveis, intrometidas em opinar a vida alheia, fingir condescendências, continuavam mesmo assim a serem os únicos animais dotados de inteligência e fala sobre a Terra. Suportar era imprescindível.

domingo, 14 de novembro de 2010

Carcará



Depois de alguns dias ouvindo, lendo e refletindo sobre a Operação 'Carcará' realizada pela Polícia Federal na Bahia cheguei a conclusão, entre outras coisas, que acontecimentos como estes, a princípio, animam a quem está cansado da impunidade e desmandos com as verbas públicas, mas desanimam a quem continua a acompanhar o desenrolar do caso. Aquilo de sempre? gente que se safa, gente que é acusada e humilhada sem provas o suficiente, jornalista inventando fato, advogado picareta fazendo milagre, e outras e outras patacoadas que só nos fazem desacreditar da eficiência da nossa justiça.

Por exorcismo, eu ouço o Chico, e aguardo a próxima invernada neste meu sertão.

sábado, 6 de novembro de 2010

Dia do Nordeste



Nossa família retornou ao Nordeste em 1995. Era um sonho antigo alimentado por minha mãe e minha avó. Vó Maria é de Itororó, minha mãe de Cândido Sales, aqui na Bahia. Nossos tios e nossa mãe foram para São Paulo em 1975 porque aqui não possuíam nada, nem terra, nem casa, nem escola, nem raiz. Em São Paulo estudaram mais um pouco, um tantinho só, o que estudou mais terminou o ensino fundamental. Trabalharam muito, receberam não tão muito. Perdemos um tio para a violência paulistana, outro permanece lá, vinte e cinco anos de trabalho e vivendo ainda de aluguel. Mas minha vó e minha mãe desejavam voltar. Voltamos.

Apesar de terem morado lá durante vinte anos, a família nunca deixou de ser nordestina. Pais, tios, vizinhos, ao nosso redor sempre tiveram pernambucanos, paraibanos, baianos, cearenses, ‘nortistas’ no dizer geral. E a gente cresceu assim, ouvindo que baiano é preguiçoso, pernambucano é briguento, paraibana é mulher-macho, cearense é cabra perigoso, os paulistinhas eram metidos a bestas, carioca malandro, mineiro cabreiro. Mas de paulistas no meio, só as crianças.