domingo, 28 de dezembro de 2014

Expectativas para o novo


Em breve, virá o novo. Não o Ano-Novo. O novo: novo-novo. O inesperado, o desconhecido, o depois. Ele virá. Estaremos prontos para ele? Ou vamos nos esconder embaixo de nossos cobertores, taparemos o sol com nossas peneiras e aguardaremos que o novo passe. 

O novo não passa, ele chega e permanece. Devemos estar preparados para ele, ou o passado de nada terá servido. Não desperdice o seu tempo sendo amante do passado. Ame o novo, ame-o agora, ou ele devorar-te-à.

Aprenda coisas novas. Descubra coisas novas. Invente novas maneiras de resolver velhos problemas. Olhe para a vida com novos olhos. 

Seja o novo.
Deseje o novo.
Abrace o novo.
Abra sua mente para o novo.

Porque senão, eu lamento, você ficará para trás. Desatualizado, ultrapassado, antiquado, quadrado, esquecido, fora de linha, jogado para escanteio. As crianças rirão de você, as mulheres rirão de você, seus amigos não serão exceção, eles também vão rir das suas velharias.

Você vai acabar num canto escuro, incapaz de trocar a lâmpada, porque não existirão mais lâmpadas ou caixa de força ou fusíveis. Terão inventado novas formas de iluminar os recintos.

Pense nisso.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Frágeis criaturas

         
     Não suportava, definitivamente, não suportava pessoas que pedem opinião sobre tudo. Talvez, porque sua autoconfiança fosse tão grande ao ponto de ser incapaz de aceitar a existência da insegurança. A insegurança de algumas pessoas é cansativa. Principalmente quando você se transforma no "oráculo da razão" para aquele indivíduo.
    Isso não vinha ao caso, naquele momento, mas viria depois. Precisava responder com convicção, somente assim veria-se logo livre daquela interrogação pendente, amarela de sem gracismo.
        - Você acha que eu devo?
       O   incrível é que gostava da criatura. Era incerto se gostava por pena ou por pura ternura, mas gostava. Achava-lhe bela de porte e de jeito, ao menos nisso a ingenuidade colaborava. Dava-lhe um ar de abandono e fragilidade. Uma criança grande precisando de cuidados e atenções. Impressionante, percebeu que gostava e desgostava da pobre alma pelos mesmos motivos. Não é a isso que costumam chamar de amor?
        A criatura magra e fragilizada lhe pediu pela décima vez um conselho sobre algo que claramente caberia somente a própria criatura magra e fragilizada decidir e isso lhe fez remexer-se na almofada. Usaria de sinceridade? Nunca dava certo.
      Respondeu com indiferença. Disse-lhe coisas duras da maneira mais doce que conseguia. Usou, como se imagina, de toda a hipocrisia ao seu alcance para proceder com neutralidade. Porém, as suas neutralidades jogavam sempre com cartas marcadas pelas mangas.
      Certa vez, a figura esguia lhe perguntou uma coisa do tipo.  Muito importante, muito importante. A promessa de nunca ceder à sinceridade foi esquecida e disse claramente, quem pergunta, vacila, duvida e pede conselho, é óbvio, deveria evitar decisões comprometedoras. A figura esguia que mantivesse a sua imaturidade só para si, sem comprometimentos, permanecesse morno, nem quente, nem frio, nem contratos que não pudessem ser quebrados. Estava ouvindo? 
         Nunca, nunca pedia conselhos. Sequer pensava. Comunicava, às vezes, suas dúvidas a algumas pessoas. Era mais como se expusesse em voz alta os termos de sua dúvida, para depois analisar por si a balança das opções.
            Viu aquela pessoa com quem simpatizava e antipatizava ao mesmo tempo partir cabisbaixa. Sentiu culpa. Talvez se tivesse mais delicadeza a convenceria. Mas, de quê? A questão não era deixá-la decidir por conta própria?
Aí é que estava: o fato de ocupar a função de oráculo lhe envaidecia.               Desejava secretamente influir naquelas decisões débeis. Isso lhe fazia sentir um poder crescente. Não, não deveria. Não queria se sentir responsável. Bastavam as cruzes que já carregava.
           Deixou-lhe partir, então.
           - Você sabe, se precisar, estarei sempre aqui para você...


Imagem:  José Ferraz de Almeida Júnior Título: Moça com Livro Data da Obra: s/d

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Era uma vez um burrinho


Ana Castro 

Era uma vez um burrinho que nasceu feio feito a necessidade. Não daquelas necessidades bobas, de comprar Play Station 2 ou bicicleta de marcha. Necessidade mesmo, daquelas que você passa quando não chove e o rio da sua cidade seca e você precisa tomar água de uma cacimba. O burrinho foi criado no interior, era gordo, ao ponto de ninguém perceber que era feio. E ele era bom, carregava tudo que lhe pediam. O burrinho pensava que tudo poderia ficar pior se não houvesse mais a carga, porque o dono lhe dava comida só por causa da carga. Ele quebrava as costelas carregando as pedras que o dono mandava e o dono retribuía com a comida. Não se importava que cada dia a carga ficasse mais pesada e a comida mais pouca, contanto que houvesse carga, pensava, haveria comida. E água.
Na cabeça do burrinho, penso eu a narradora, esta devia ser a vida de todos os burrinhos, ele havia nascido para ser um burrinho cargueiro, que comia devido à bondade de seu dono. E à carga.
Mas o mundo, como todos bem sabem, não se compõe somente de burrinhos e cargas. O mundo é grande e cheio de perigos e surpresas. Um dia parou de chover, quer dizer, ficou sem chover por muito tempo. Anos. Dizem que foi por causa do desmatamento das matas ciliares, outros dizem que os gases liberados pelas vacas foram tantos que o buraco da camada de ozônio se tornou grande demais, a temperatura da terra mudou e o clima junto. Aí parou de chover. Quer dizer, ficou sem chover por muito tempo. Anos.
Sem chuva, ninguém mais precisava de pedras. O dono do burro perdeu o emprego das pedras. Ele vendeu o burro para dar de comer aos filhos, e o burrinho trocou de sina. O novo dono era dono também de uma charqueada. Lá se foi o burrinho, triste, preso na carroceria de um caminhão velho, junto com vários outros burrinhos de todas as cores e procedências. Iam para charqueada, que como todos bem sabem, trata-se do local onde se entra burro e sai-se charque. Ali, na estrada cumprida, o burrinho aprendeu que todos os burrinhos são iguais, dividem a mesma sina de animais tristes, explorados, com mais carga do que comida. Aonde iam, não sabiam, mas iam.
Chegaram. Viagem sem água, nem comida, nem sombra. O motorista manobrava para estacionar próximo à rampa de acesso. Os urros dos burrinhos incomodados formavam uma sinfonia triste de doer coração de quem ainda leva o coração no peito. Perguntas sem resposta pipocavam na mente do nosso burrinho: onde estamos? Por que não nos deram água? O que vai acontecer conosco? O novo dono precisa que carreguemos pedras? A que horas nos darão palha? Todas as respostas deixaram-se ficar sem respostas enquanto o fundo do caminhão se aproximava lentamente da entrada do matadouro. Devo aqui dizer que o destino certo do nosso burrinho e de seus companheiros burrinhos teria se cumprido não fosse a intervenção de uma força maior. Um decreto presidencial ordenava o fechamento de todas as charqueadas do Estado e a destinação imediata dos equinos, muares e asininos para um novo Ministério que acabara de ser fundado: o Ministério de Apoio Mútuo às Emergências e Desastres Naturais. Parece-me que esta nossa história ambientada em um futuro alternativo caminha para um desenlace incerto. O que não é de todo mal, pois o destino de todos nós é incerto até que se concretize.
Os burrinhos desceram do caminhão 45km a frente, equilibraram-se pela rampa bamba até um curral abastecido com água, palmas, palha e sombra para todos. No meio da noite, uma luz forte foi acesa e homens usando luvas de proteção vieram ao curral para borrifar um líquido sem cor nos burrinhos, passaram pomadas em suas feridas e trocaram as ferraduras rachadas. Os outros burrinhos eu não sei, mas o nosso ficou contentíssimo, ele entendia que estavam recebendo tratamento cuidadoso, isso só poderia significar que seriam novamente empregados. E foram.
A grande seca não atingiu apenas o negócio de pedras do seu antigo patrão, mas todo o país. Cidades com bilhões de habitantes que se amontoavam em prédios altos como as nuvens morriam de sede e fome, não havia água o bastante para gerar energia elétrica que movesse os motores de sucção de água do subsolo. O combustível fóssil se exauriu em poucos meses para aquele país que dependia de sua agricultura, agora impraticável devido à falta de chuvas (dizem que o combustível alcançou preços proibitivos, dizem até que o governo preferiu vender o combustível aos estrangeiros na mesma situação a usá-lo com seus cidadãos, mas essas histórias eram rapidamente sufocadas pela urgência do trabalho duro). No lugar de braços mecânicos e motores bebedores do óleo negro mais caro do que ouro, foram colocados braços, lombos e pernas de homens, mulheres e todo o tipo de animais de tração. O transporte era feito por animais e pessoas puxando outras pessoas, algumas vezes as pessoas e animais iam puxando as carcaças dos antigos automóveis, carregando outras pessoas ou mercadorias. Os animais giravam imensas rodas de moinhos que içavam do subsolo água para matar a sede, carregavam água salobra do mar para tanques de dessalinização e carregavam o refugo para piscinas artificiais onde se criavam peixes e outras criaturas marítimas das quais nosso burrinho nunca ouvira falar. Nas cidades, não se viam mais ônibus ou caminhões, muito menos carros pequenos, viam-se bicicletas, carroças, enormes carroças assemelhadas a barcaças sendo puxadas por 5 parelhas de touros. E pessoas, muitas pessoas, que preferiam caminhar à sombra dos edifícios colossais ao invés de cozinhar dentro deles sem refrigeração artificial. O comércio mudara rapidamente, em uma semana, o burrinho e seus companheiros não serviam para nada além da charqueada, carne barata para gente pobre comer. Na outra semana, eram mais valiosos do que qualquer automóvel de luxo.

Finalmente o burrinho sentiu-se necessário, sentiu que o que fazia era bom. E ele era bom, carregava tudo que lhe pediam. Sabia que os donos nunca deixariam de precisar da água, sempre lhe dariam um pouco desta, e teria palha e sombra. Amava os homens porque precisavam de seu trabalho, amava-os mais ainda agora: sabia que os homens também carregam as coisas quando necessitam. O burrinho pela primeira vez foi feliz e continuou sendo até o dia de sua morte.

sábado, 13 de dezembro de 2014

Cratera

   

     A máquina, certo dia, começou a fazer barulhos estranhos. Como se algo dentro dela crescesse e roesse de dentro para fora. Todos na cidade sentiram muito medo de que o maquinário se erguesse do chão e se lançasse com pés e mãos mecânicas contra a população, que até ali sempre havia tratado a máquina com consideração.
      Mas não, ela não se ergueu, nem aprisionou os homens para usá-los como baterias bioquímicas mais tarde. O que ocorreu foi muito pior.
        O solo abaixo da máquina, alterado pelas vibrações constantes das entranhas metálicas, começou a ceder, centímetros e mais centímetros, dia a dia, formando depois de semanas uma enorme cratera que podia ser vista da Lua. E foi vista, segundo consta dos relatórios técnicos de satélites da Nasa.
      A cratera formada chegou, em poucos meses, até o magma da Terra, a despeito de todo o poderio militar que se acumulou em suas bordas, inúteis diante da força maior que por ali agia. Dela jorrou fumaça negra e enxofre por um mês. A nuvem tóxica e malcheirosa sufocou a todos os viventes que não conseguiram comprar máscaras de gás a tempo. Finado o mês, a fumaça cessou. Pelas paredes da cratera foram avistados seres escalando as paredes, eram feitos de puro fogo derretido e metais reluzentes. Mais tarde, foi anunciado que se tratavam dos verdadeiros habitantes do planeta Terra, refugiados há milhares de anos no interior do planeta, que voltavam somente agora para espiar o que acontecia na superfície do seu planeta. 
      Ironicamente, o seu retorno constituíra-se em novo cataclismo cósmico desencadeador de nova extinção das espécies. 
          Exceto a sua.  

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Carga perdida

     


O coronel, da cabine do submarino prateado, no fundo do Atlântico, ordenou ao cabo que taquigrafasse para a base de Havana, Cuba, a seguinte mensagem:
     "Sr Presidente, ñ recebemos turbina necessária p conclusão do míssel 33, Missão MiamiFall2642, peço que v. exa providencie este componente essencial para cumprirmos nossa missão original".

       ...

     Um cargueiro apitava no porto de Ilhéus, soltando fumaça, pedindo com urgência que os marinheiros retornassem. Mas, Manuel, o responsável pela carga misteriosa, teimava em permanecer morto no fundo do lago, sua cabeça esmagada pela quadrilha que roubara a carga preciosa e secreta extraviada do cargueiro de Havana há dois dias.

       ...

         E o caminhão pulava aos trancos nos buracos da estrada, com seus choferes mal pagos, seus endereços rasgados esvoaçando pela janela, com pressa, como sempre, para entregar a próxima encomenda, e com raiva, pelo frete perdido na última entrega, feita por engano.

       ...

       Miami permaneceu segura por mais duzentos anos, sem que nenhum míssel lá chegasse, ao menos de Cuba. O cargueiro acabou no fundo do mar, junto com o submarino nuclear desativado. O caminhão não roda mais, virou peça de museu. Somente a máquina permanece reluzente e bem cuidada, repousa adormecida e perdida naquela cidadezinha pacata do interior.


(Inspirado no conto "A máquina extraviada", de JJ Veiga)

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Mais nada

Sem tempo o bastante para pensar
Falta liberdade para esperançar
Aqueles anos da juventude esquecida
Dois Minutos antes da saída

Não dá pra sentir mais nada
Não dá pra sentir
mais nada
Não dá.





terça-feira, 30 de setembro de 2014

Poema de um Minuto

O desafio é escrever um poema
dentro de um minuto.
Parece difícil.
Acrescento as variações de sempre:
um poema que não fale de amor,
para ficar sempre fora de moda.
Não pode falar de flores,

porque são coloridas demais.
Gotas de sangue pra temperar.
Pronto.






Pós-escrito: A borboleta é o que brota do sonho quando este se incendeia. O resultado são nuvens de borboletas cinzentas e fugidias.

terça-feira, 8 de julho de 2014

Dos sonhos

Da coisa que mais lembrava era dos sonhos. Estes sim eram interessantes, amedrontadores, sensuais. Nada daquela sonseria tola da vida diurna, hora marcada pra levantar e deitar, rota de trabalho extensa em mapa de obrigações macambúzias. 

Sonho de cobra, "gravidez na família", a vó dizia. Tinha medo então de engravidar, esquecia da idade impúbere. Corria e corria para fugir das serpentes, quando cansava parava e tentava hipnotizá-las com um impor de mãos inútil, mas que funcionava no sonho, pois era sonho. A cobra então subvertia-se em fumaça e tornava-se outra coisa, pessoa. Encontrava com a pessoa sem dúvida na manhã ou tarde seguinte. Não sabia se porque sonhava com gente conhecida ou se por premonição.

Sonho de amor, raros. Encontrava alguém, no geral desconhecido, e amava a pessoa. O que é amar? É virar um ímã bem grande que é atraído pra todo lado pela pessoa que se ama. No sonho, amar é melhor do que amar de verdade. Não importa muito se em sonho há reciprocidade, sabe como é.

Sonhar com dentes é o mais realista que há. Os dentes parecem mesmo frouxos na boca, dá a angústia de engoli-los caso caiam. É horrível se imaginar banguelo, mesmo em sonho. Talvez por isso lhe dissessem que sonhar com dente é sinal de morte. Há coisas piores do que sonhar com a morte. Morria de vez em quando, quase sempre acordando em seguida. Coisa sem novidade. Ruim era sonhar com algum erro que traria consequências, coisas proibidas, interditadas, mas que no sonho, pelo menos nele, não se resiste. Porém, até no sonho se sentia culpada e pensava, como vai ser daqui pra frente?

Bebês, noites cansativas, de repetir cuidados infrutíferos. Se assim era preferiria não ter filhos de verdade. Nunca conseguia descobrir os verdadeiros pais daqueles filhos, mas sua mãe sempre dizia que as crianças dos nossos sonhos são crianças que algum dia a gente terá que cuidar. Só teve uma filha e a sua filha nunca conseguirira ser tão chata e inconveniente quanto aqueles bebês feitos de sonho, chorões e fujões.

Foram tantas fugas, fugas bobas. Às vezes esquecia do porquê de fugir. Seus captores se aproximavam e se distraíam também, meio que esperando que ela voltasse a fugir. Um correr por correr sem razão e sem fim. O irmão menor era um companheiro constante destas fugas. Fardo, é o que era. Parecia que as fugas sempre se davam para protegê-lo, e ele teimava em ficar pra trás e quase ser capturado sempre. O irmão em seus sonhos era um complicador de tudo, um elo a dar nós. O bom destes sonhos de perseguição era quando conseguia voar. Amava tanto os sonhos de voar que com o passar dos anos aprendeu a atrair esse tipo de sonho. Antes de dormir, dizia, mentalmente, vou sonhar que estou voando. Não assim, por nada, tinha de ser uma afirmação convicta, uma ordem dada ao subconsciente. De vez em quando dava certo, com voar e com outras coisas também. Passou a preferir o sono do que o despertar.

Nunca foi uma criança muito ingênua, sabia das coisas. Sabia que sonho é sonho, pão é pão. Não dá pra trazer o pão do sonho para a realidade. Mas dá pra fechar os olhos outra vez e tentar voltar para o mesmo sonho. Isso acontece mais com os pesadelos, ainda assim, custa pouco desejar. Sonho e desejo andam assim ó, colados. Grudados, atados, enrolados nos cobertores, em sonhos molhados de inundações. O corpo boiando num rio tranquilo, os vizinhos às margens, gritando de inveja. Mentira, não conhecia os vizinhos, nem rio, mal sabia boiar.

Sabia, contudo, desejar. Antes de saber de fato, já sabia de inconsciente o que era morte, desejo, medo, amor e desespero. Era sonho.

quarta-feira, 2 de julho de 2014

Falsas promessas


O mundo vai ser inteirinho do jeito que você deseja. Por quê? Para te agradar, é claro. O que você acha estará sempre certo, esqueça do tempo dos erros, daqui para frente tudo vai ser acerto. Ninguém mais te questionará, pois na sua testa, lógico, vai a marca do "sei de tudo".

Só aplausos adornarão o seu caminho e risos. Flores serão jogadas aos seus pés. Será promovido duas vezes no próximo ano, reajuste salarial acima da inflação. O câncer da sua mãe vai entrar em remissão, o seu diabetes e a sua pressão vão ser iguais aos de um menino de dezoito anos.

Na sua sacola de pão, virá sempre um a mais. Em todas as lojas que entrar, será o cliente número um milhão.

Tudo será felicidade e alegria e festa, pra sempre, todos os dias, sem feriado.

domingo, 9 de fevereiro de 2014

Tudo o que será

Será? Será que será? 

A promessa que me fizeram foi essa: tudo será melhor. Dessa vez, tudo vai dar certo. Amanhã será muito melhor do que ontem. Alimento, assim, a esperança hoje de que amanhá será muito melhor.

A esperança faz um calorzinho aqui dentro de mim onde antes havia dor e medo. Quero chorar de felicidade, lágrimas chegam-me aos olhos. Amanhã vai ser bem melhor. Sim, eu acredito. Eu quero acreditar.

Vai ser melhor, vai ser melhor, tudo será, tudo será.

Obrigada.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

O som da festa


- Essa, eu garanto, vai ser a última vez.

E o zunido na cabeça a fazia odiar o mundo, pedir a Deus para ficar surda. Não era só o som da festa, natalina, eram as vozes, os passos, os talheres batendo nos pratos, as televisões. Era aquela gente toda comemorando o nada.

Mas talvez não fosse. Talvez, quem sabe, fosse coisa só sua, isso de odiar os sons, mal querência cultivada desde sempre. Ou seriam os remédios? Odiava os remédios também, mas que direito a gente tem de odiar aquilo de que depende? Desde menina, a falta de sono, o apetite minguado, o juízo alvoroçado por qualquer barulho. Coisa fina o juízo dela. 

Honesta e trabalhadora, porém. Criou os filhos sem pai, os netos sem genros. Escovava as calçadas alheias, era o gari da rua. E o vigia, o síndico, mas nunca a fofoqueira. Só que não gostava de barulho.

Estava errado aquilo, deixar o som alto demais, acima das especificações da lei. Valia a lei? Reclamar, reclamava sempre, saía de chata. Mulherzinha reclamona. Só quem sabia de suas dores era ela própria. Outro, no seu lugar, teria pirado há muito mais tempo. Ela não, viveu ali vinte anos e só fez reclamar. Nem isso, pedir com educação. Ouviram? Não.

Agora era o basta.

Procurou, sabia que estava lá, numa caixa, esquecido. Achou, sorriu aliviada, pois se não achasse seria bem pior. Vestiu o roupão por cima da camisola e arrastou as sandálias até lá.

- Pou...

Quase ninguém notou até que alguém notasse. 

Um tiro só no meio da testa do dono da festa na frente dos filhos pra festa acabar. E o som ficou mudo.