quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

O som da festa


- Essa, eu garanto, vai ser a última vez.

E o zunido na cabeça a fazia odiar o mundo, pedir a Deus para ficar surda. Não era só o som da festa, natalina, eram as vozes, os passos, os talheres batendo nos pratos, as televisões. Era aquela gente toda comemorando o nada.

Mas talvez não fosse. Talvez, quem sabe, fosse coisa só sua, isso de odiar os sons, mal querência cultivada desde sempre. Ou seriam os remédios? Odiava os remédios também, mas que direito a gente tem de odiar aquilo de que depende? Desde menina, a falta de sono, o apetite minguado, o juízo alvoroçado por qualquer barulho. Coisa fina o juízo dela. 

Honesta e trabalhadora, porém. Criou os filhos sem pai, os netos sem genros. Escovava as calçadas alheias, era o gari da rua. E o vigia, o síndico, mas nunca a fofoqueira. Só que não gostava de barulho.

Estava errado aquilo, deixar o som alto demais, acima das especificações da lei. Valia a lei? Reclamar, reclamava sempre, saía de chata. Mulherzinha reclamona. Só quem sabia de suas dores era ela própria. Outro, no seu lugar, teria pirado há muito mais tempo. Ela não, viveu ali vinte anos e só fez reclamar. Nem isso, pedir com educação. Ouviram? Não.

Agora era o basta.

Procurou, sabia que estava lá, numa caixa, esquecido. Achou, sorriu aliviada, pois se não achasse seria bem pior. Vestiu o roupão por cima da camisola e arrastou as sandálias até lá.

- Pou...

Quase ninguém notou até que alguém notasse. 

Um tiro só no meio da testa do dono da festa na frente dos filhos pra festa acabar. E o som ficou mudo.