terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

A cidade onde não se morria só


A cidade era pequena ao ponto de velório virar festa.

Quem morria ganhava seu dia de celebridade, pobre ou rico. Para preservar a verdade, pobres ou ricos iam parar no mesmo cemitério superlotado. Covas por cima de covas, carneiros construídos com seis ou sete andares para fazer caber no mesmo metro quadrado a família inteira. Sete palmos ali era luxo ao qual nem o prefeito se daria. A diferença entre as classes não se via, só o coveiro sabia que os ossos desenterrados e que se perdiam pelas barrancas do rio eram os dos pobres. A cidade era pequena demais para mandar emparedar os restos, ademais, em qual parede?

Ninguém estranhava, o povo fazer velórios tão bonitos, porém sem nunca inaugurar um cemitério novo, onde não fosse preciso pisar nas covas para enxergar os parentes serem içados ao último descanso. Devia ser porque quase ninguém visitava o campo santo, a não ser em dia de muito lamento, quando não se repara em detalhes. Ou porque inauguração de cemitério não rende votos. Quem morre acaba, os que vivem esquecem.

Por vida, os familiares dos defuntos pediam o caixão ao prefeito. E tinha que ser coisa lustrosa, de luxo, com coroa de flor e aresta dourada. A municipalidade era tão zelosa de seus finados que quem morria em outro estado era mandado buscar. Estou para dizer que ali gastavam mais com os mortos do que com os vivos. Dizer que o prefeito tinha medo de perder os votos da família enlutada, isso eu não digo. 

Havia todo um ritual fúnebre que a modernidade não estragava. Registrada a morte por um dos médicos do hospital ou pelo delegado, começavam os preparativos. Alguém da funerária, a de conhecimento da família, vinha para anotar o nome dos familiares do ido, escolher música, enfeitar a casa. Um carro de som rodava pelas ruas anunciando o nome do falecido, seus familiares e o endereço onde se podia ir dele despedir. Sempre aparecia alguém da família para desenhar em cartolina umas frases de adeus, colar a foto do morto em momento qualquer. As vizinhas e tias velhas vinham fazer chá, café, biscoito, comprar bolacha e algum homem da casa lembrava-se de comprar pinga da boa, batizada de preferência, além de cortar a lenha.

A lenha era para acender na frente da casa. A dirigente da capela emprestava os bancos da igreja para a família para quem fosse passar a madrugada, e isso muita gente fazia, sentavam-se ao redor da fogueira e dividiam o tempo da vigília entre falar do morto, tomar chá e café e mastigar. Identificava-se uma família em luto pela quarteirão fechado por cavaletes e a fogueira ardendo. E claro, sempre havia uma multidão na porta, mesmo quem não conhecia ninguém da família ia, porque se tratava de um acontecimento importante.

Eram umas conversas longas ao pé do fogo, de esmiuçar a vida do falecido desde menino. A curiosidade da cidade quase toda desfilava pela sala onde se punha o caixão, morreu de quê, do que viverá a viúva, e os filhos, quantas concubinas teve, quantos bastardos. Um a um contavam suas passagens com o morto, brigas, bebedeiras. Das mulheres, indagava-se logo sobre os namoros, sobre os bordados, se era boa filha, irmã, esposa. Nas famílias mais católicas as beatas tiravam duas ou três horas para rezar o rosário, e entre as dezenas de ave-marias cantava-se. Era lindo e triste.




O ápice da celebração chegava quando a funerária vinha buscar o caixão para levá-lo ao cemitério. Era o momento em que todos sairiam de seus lugares e se apertariam pelas ruas estreitas para acompanhar o cortejo nos dois e até três quilômetros que podiam separar a casa do cova. Era a hora da mulher ou da mãe do defunto chorar mais alto, com o coro das irmãs, das tias, das primas. Se o morto ou a morta era jovem, juntavam-se ao coro os colegas da escola, da bola, da academia.

Saía o cortejo, apinhado de gente, por onde passava fazia abrir portas e janelas para vê-lo ir. As casas comerciais baixavam as portas em sinal de respeito. O trânsito parava, todos paravam. À medida que o caixão se aproximava do cemitério, o séquito diminuía. Esse momento se reservava à família e aos amigos mais chegados, e também muita gente não gosta de pisar em cova de cemitério.

O mesmo homem cavava todas as covas da cidade há trinta anos. Sempre tomava meio litro de cachaça antes de qualquer enterro. Pra não amolecer. O povo tinha o costume de lavar os pés e as mãos na saída do cemitério e isso o deixava puto, porque o cemitério ficava numa ladeira, a água da entrada escorria até o muro do fundo e ia fofando ainda mais a terra escavada.

Depois dos enterros a cidade ficava ainda mais parada, como se o pouco  movimento do costume fosse cansativo. Era um lugar no qual não se morria sem ninguém para lhe por uma vela na mão.

domingo, 10 de fevereiro de 2013

Carnaval


A picape velha saltava e rangia na estrada de terra. A poeira do cascalho da estrada se erguia no ar e formava uma neblina fina e amarelada que obrigava os automóveis a acenderem os faróis às três da tarde. O movimento na estrada alcançava picos depois do meio dia e depois das dezoito, quando a mão dupla cheia de ladeiras e curvas e curvas em ladeiras se tornava uma arapuca pronta para disparar contra os foliões alcoolizados. Placas amarelas indicavam a direção da próxima curva, fincadas sobre o mato recém roçado das margens da estrada.

Naquele ano a vegetação estava seca e cinza, quase estorricada, sem nenhum açude para amenizar a paisagem de caatinga e seca e cercas de arame farpado. A madeira mais grossa que se via por ali era a dos mourões das cercas, enegrecidos pelas queimadas anuais, herança de um passado de mata virgem há muito devastada.

Do alto avistaram a pequena vila, não mais do que dez casas sobreviventes, filhas bastardas de um passado esquecido de caminho de tropas, enfeitadas somente por uma velha igreja em ruínas, teimosa por manter-se sobre suas bases de tijolos crus. Descendo a ladeira, podia se notar uma ou outra construção nova: os remediados da sede do município vinham erguer suas casas de veraneio em desordem, obviamente invadindo a área de preservação das margens do rio.

O rio de águas barrentas era só uma faixa rasa de vinte metros de largura, os moradores atravessavam com água nas canelas nos locais certos. Há um par de anos ninguém morria afogado dentro de um dos traiçoeiros poços estreitos e profundos, mais ou menos conhecidos de todos os banhistas experientes, teimosamente ignorados por crianças e adolescentes inconsequentes. Aquele ano novamente o rio não engoliu ninguém naquele ponto, pois o poder público contratara salva-vidas e demarcara as áreas perigosas com bandeirolas. O rio passaria fome, não fossem os bêbados que o faziam de cama e os traficantes que nele desovavam seus desafetos.

Teríamos somente mais um ano de gritaria e festa, de turistas seminus e completamente embriagados bebendo mais cerveja e uivando para os dançarinos obscenos de cima do palco, senhoras com as coxas de fora comprando quinquilharias e guloseimas nas barraquinhas, moças e rapazes entrando e saindo escondidos dos arvoredos à beira d’água, crianças correndo com sorvetes e baldes de areia entre as piscinas.

Parecia mesmo que o carnaval daquele ano não teria nenhuma novidade. Mas um dos caminhões que saíam com a carroceria apinhada de homens e mulheres bêbados e crianças de colo e senhoras de chapéu de palha não encontrou o fim da estrada. Ele correu como louco saltando pedras e aterrissando derrapante sobre as camas de areia fina, e num desses saltos se viu em frente a um ônibus de faróis sonolentos que subia a ladeira pela qual o caminhão queria descer. Desembestado, o caminhão não teve freios para parar, e tentando evitar o impacto fatal, não desviou por centímetros, encabeçando com a outro gigante metálico e arremessando a todos os que nele iam dependurados contra as cercas e os espinhos que naquele sítio faziam morada.

Então, viu-se um festival de corpos voadores, e pousos forçados que deixavam em seus rastros peles e carnes ensanguentados. Teve quem saiu sem arranhão e quem quebrou fêmur, bacia, rótula, teve quem ficou sem cara, sem roupa, sem bunda, sem tampo. O caminhão dobrou-se todo sobre o próprio eixo metálico e mais tarde deu testemunho de que a coisa podia ter sido muito pior. E o ônibus quietou-se calado, aliviado por ter levado só esbarrão e não ter ferido nenhum de seus três ocupantes. A estrada virou uma folia de luzes vermelhas e sirenes assustadas, de uniformes verdes e brancos indo e vindo. Formaram-se duas comitivas, uma em cada direção, donde os foliões que não participaram do acidente assistiam à muvuca de camarote, meio que irritados e cansados pela espera prolongada. Aquela ladeira nunca se tinha visto tão cheia de gente e de cores, irrigada por sangue jovem e marcada por tantos pés confusos.

No dia seguinte viria a quarta de Cinzas.