quinta-feira, 29 de agosto de 2013

A sombra das horas

Começou com a instalação do dispositivo sonoro na torre da igreja. Duvidou do que ouvia. Sinos, como? Quando? Não tivera notícia de qualquer obra nesse sentido. De fato, não houve obras, tratava-se apenas de uma saída de som ligada a um computador. Muito mais simples e barato do que um pesado sino metálico. O "para quê" ou o "por quê" não saberia explicar, sequer ousou perguntar. A existência de uma aparelhagem de som que imitava sinos, pior, imitava uma curta melodia executada por sinos seguida por respectivas batidas indicativas do número de horas dos dias, isso tudo enfim, não devia lhe dizer nada. Não devia, mas, desgraçadamente, dizia.

Hora a hora, hora a hora, o som invadia a sua privacidade e a lembrava de que mais uma hora havia passado. O tempo não corria mais livre e solto, incalculado, ele passou a saltitar, fazendo pausas contemplativas. Curto silêncio intercalado por marcações escandalosas. É tempo, é tempo. Já passou, já passou. As horas ficaram curtas após aquela marcação invasiva, curtas demais para o seu gosto. Sentia que estava desperdiçando o seu dia em coisas inúteis. Não podia se sentar para assistir TV, assim que o bater lento e metódico dos falsos sinos a alcançasse, sentiria culpa. A leitura de um livro  nunca lhe pareceu demorar tanto. Absurdo, cem páginas apenas, e se passaram quatro horas! 

Aquele peso sobre o peito, aflição antecedente de compromissos importantes, iniciava muito antes. Seus dias tornaram-se curtos, muito curtos. E estéreis. A passagem do tempo agora  só lhe trazia sentimentos negativos. Estava muito velha, não haveria mais tempo para correr atrás de felicidade ou realizações, não sobrava tempo durante o dia para se dedicar aos sonhos, as obrigações começaram a ocupar todo o tempo. As suas esperanças receberam um toque de recolher, conformava-se pouco a pouco com a aproximação inevitável da morte.

Queria chorar, sem razão, porém, até este simples extravasamento parecia luxuriante demais  para aqueles dias tão curtos. Como desejava que o tempo passasse enfim, inteiro e definitivo, corresse, que o enredo da sua vida disparasse de uma vez para um ponto mais à frente, onde não sentisse a angústia daquele arrastar macilento das horas sobre seus ombros.

A sombra das horas corria ligeira por sua vida em branco. Faltava-lhe tinta para preencher  o vazio.

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Criação

Para que me criaram, pergunto. Sou obra de algum arquiteto, há propósito na minha preparação  para o mundo, quero saber. Nasci, como dizem, para ser feliz, ou nasci, como dizem, para penar. Tenho liberdade para decidir a que vim, talvez, escolher o que devo ser. Talvez não, posso ter sido criada por acaso, sem razão, fruto de um desejo incerto, largada ao léu, tornei-me o que quis, sem querer, não sei.

Qual seu sonho? perguntou a menininha. Tão inocente, quer saber o que eu sonho, mas eu não sonho, lamento. Realizei todos os meus sonhos, só que cedo demais, sobrou tempo para pensar, devia ter me demorado mais no processo, assim restaria pouco para a apreciação de mim, esta obra, sem arquiteto, sem propósito, despreparada para o mundo.

Perdi os objetivos, aliás, cumpri-lhes. O que me resta? Matar o tempo, matar o tempo, matar o tempo...

E se eu fizer, disser, quiser algo novo, que me dirão? Que não. Devo contentar-me com o realizado, estancar qualquer vontade, estacionar ali e deixar de estúcia.

Obedecerei, é claro, a mim, não a outro, não há outro, hei. Resto-me. Criei-me.

terça-feira, 6 de agosto de 2013

Chamada perdida

O telefone celular dava sinal de ocupado o tempo todo. Devia estar na estrada, por isso fora de área. Também tinha o hábito de desligar o celular durante as aulas, para não interromper os professores. Desistiu de tentar. Ela retornaria a ligação quando estivesse disponível.

Era um dia de agosto, o vento fazia com que aquele dia quase na primavera ficasse tão frio quanto um dos dias de junho, mas sem chuva. As nuvens escuras no céu sinalizavam o mau tempo que se aproximava. Ao que parece, a frente fria passaria por eles para ir se despejar em locais mais propícios a precipitações climáticas. Ali chovia quase nunca, as chuvas sempre passavam direto, com pressa.

A revoada de urubus ao norte combinava perfeitamente com o cinza daquela manhã. Ao menos, os jardins da praça estavam sendo bem regados, garantindo assim um verde revigorante para os seus olhos no caminho para o trabalho. A quantidade de cães vadios rasgando sacolas de lixo, contudo, denunciava o desleixo dos moradores do bairro para com a limpeza pública. O vento soprava e todos os papéis daqueles malditos sacos colocados fora do horário do recolhimento suspendiam-se sobre as cabeças dos passantes, prendiam-se aos fios de eletricidade e sinalizavam terrenos com capins altos. No meio daquele capinal da esquina, certa noite, havia erguido a saia dela às pressas, pela primeira vez, com medo de serem vistos ou ouvidos pelos bêbados do bar de seu tio.

Depois daquele dia ela foi sua sempre, onde quer que escolhesse, não importava quão perigoso fosse. Mas assim que casaram tudo mudou, ela decidiu fazer aquelas viagens estúpidas, todas as noites, sem ele. O que havia para ser feito naquele fim de mundo sem ela? Vinha tentando convencê-la de que em breve ganharia o bastante para pagar uma escola particular para ela, sem sucesso, porém. Ela desejava ser independente, se formar, ganhar tão bem quanto ele. Gostaria de vê-la contentar-se com aquilo que já possuíam, não era muito, mas era o suficiente para ele. Esse vazio de achar que não era o bastante para ela preenchia os pensamentos dele todo o tempo. Às vezes, preferia ter escolhido outra para ser sua, uma mulher com a cabeça menos cheia de caraminholas sobre independência, profissão, sonhos, viagens. Por que havia escolhido aquela mulher preocupada em subir na vida, quando a maioria delas contenta-se com roupas novas pela ocasião das festas?

Havia aquela de quadris muito largos, vivia dando mole para ele, devia achá-lo muito interessante. Tinha 5 anos mais que a sua mulher, jamais colocara os pés para fora da cidade. Não tinha cara de quem sonhava com nada, mas jeito de quem põe as mãos onde precisa e se lhe pedem.

O dia passava lento demais para ele, sempre preocupado com o que passava pela cabeça dela. Talvez ela não o quisesse mais em breve, porque ele não tinha sonhos como os dela. E se depois de formada ela arrumasse um emprego bom longe dali, em um lugar que não precisassem dos serviços dele? Não desejava ser encosto dela, muito menos gigolô. Um homem precisa ser o provedor, indispensável. Ser casado por ser não faz durar casamento. A vida seguia, assim, cheia de incertezas e medo de perdê-la.

O celular vibrou quase no final do expediente na loja. Era ela. Atendeu com um sorriso. Do aparelho saltou uma voz masculina, perguntando se ele a conhecia, qual era o parentesco e avisando que ela estava morta. Um tiro, na beira da estrada, assalto. O policial que atendia a ocorrência usava o celular da vítima para tentar localizar a família.

Era o fim de todas as dúvidas.