quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Conto de Natal



Havia uma árvore grande e velha. Havia uma estrada empoeirada. Havia estrelas no céu. Mas esta não é uma história sobre árvores, estradas ou estrelas. A história é sobre uma moça sem nome. Não conto o nome da moça pela mesma razão que não dou a espécie da árvore ou o código da estrada e não digo as constelações formadas pelas estrelas: para generalizar. Essa história aconteceu em qualquer lugar ou poderia acontecer, quem sabe até acontecerá realmente, isso ninguém pode negar.

A noite estava negra como costumam ser todas as noites e a estrada mal iluminada como nem todas são. A moça caminhava sozinha e parou junto da árvore para descansar. Era Natal, mas nenhuma das duas se lembrava disto. Nem a moça, nem a árvore. A árvore, talvez porque ninguém a tivesse explicado sobre a existência da festa. A moça, porque outras coisas lhe ocupavam a mente.

Naquela manhã a moça saiu de casa cedo para ir ao mercado. Comprou ingredientes para um jantar especial. Mais tarde, na manicure, riu com as amigas. Conforme se aproximava a noite aumentava a sua expectativa. Voltou cedo para casa e cozinhou. Depois vestiu a roupa nova e foi para a sala esperar.

No intervalo entre cozinhar e se vestir o seu celular recebeu 25 mensagens de textos enviadas por seus amigos para felicitá-la pelo Natal. Na sua caixa de correios estavam cinco cartões natalícios enviados pelo comércio. Mas já era tarde e o seu companheiro não chegava. Obviamente ele teria ótimas desculpas para o atraso, pensava.

Então o telefone tocou. Ela atendeu e recebeu a notícia. Daquelas que chegam sempre depressa ou tarde demais. Precisava ir ao hospital com urgência e foi. Saiu com o carro no meio da noite para procurar o hospital onde estava seu companheiro. Os faróis se multiplicavam pelo caminho, até o ponto em que pararam de se multiplicar, simplesmente deixaram de sinalizar, porque o trânsito era uma massa só de carros parados tentando passar e levar pessoas para a ceia de natal em algum lugar. Não havia esperança de que o trânsito andasse tão cedo, dizia o rádio do carro.

Talvez, somente talvez, ela tivesse uma chance de chegar a seu destino. Atravessaria o bosque que dividia aquela via de outra, da outra pegaria um táxi ou ônibus. E assim ela fez, mas se arrependeu. O bosque era maior do que pensava. Mais escuro, mais silencioso e menos plano. Mesmo assim continuou, porque poderia já ter chegado ao meio, e como todos sabem, do meio não se volta. Ao sair do bosque estava suja, cansada e aliviada por não ter se perdido ou quebrado uma perna. Infelizmente, a outra via não passava de uma estrada de chão sem sinalização. Decidiu seguir por ela, pois não suportaria voltar ao bosque. Se não há lógica em voltar do meio pro início, muito menos haveria em voltar do fim ao começo.

Assim ela continuou andando, pés doendo, coração aos saltos, procurando pela estrada na qual desembocaria a estrada pela qual ia.

E encontrou a árvore.

E nenhuma das duas se lembrava de que era Natal.

sábado, 22 de outubro de 2011

Cantiga velha

Opa, opa, opa
a poesia virou uma zorra.
Nhão, nhão, nhão
mastigo poesia com feijão.


Ninguém lê mais ninguém lê mais
só os letreiros dos comerciais.


-Mãe, me compra um livro!
-Não somos ricos, menina!
Chora chora chora
até a hora de ir pra escola.

Não risca o livro, não dobra o livro
o livro não é de comer.

O livro é bicho papão
só falam dele na televisão.

Cantiga do recreio:
"Fui na biblioteca buscar um livro e não achei,
mas achei na internet um resumo e aproveitei."






domingo, 25 de setembro de 2011

Sem sentido

De menina não aprendi a trançar
Rezar me ensinaram, mas eu esqueci
Régua e compasso nunca soube usar
Eu não leio mapas ou olho estrelas
Faço a travessia sem guias nem nortes
De olhos fechados para melhor olhar para dentro
Surda às buzinações e ricochetes
Sigo as insinuações do pensamento.

O Todo e a Parte

Do todo entrevejo a parte
que se parte no manuseio,
em pó tudo é mais concentrado.

O que é grande demais não se vê de perto.

Afasto, me perco, nunca me acho
só na mente vizualizo a meta.

Ave, só luto!

Em absoluto
na vida só luto.

Entre o verso e o avesso
sigo resoluto.
Contra o metro e a prosa
a parede e o muro
e o nome da rosa
e o conto não conto,
luto e reluto.

Assento o concreto em bases solúveis.
Desmancho as tramas das redes onde sonho,
ao invés de dormir 
eu luto.





segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Leia a bula

Instruções para ler esse blog


Antes do depois e do mais adiante: você não receberá nenhum retorno material por ler o que aqui estiver escrito. A autora destas páginas não acredita em retorno material ou financeiro pelo seu trabalho, não o dá e não o recebe.

Este blog não tem dicas úteis. Você não vai aprender a fazer nada aqui. A autora não sabe fazer nada de aproveitável ou repassável, e o que sabe ela guarda para si.

Aqui se fala de coisas ora sérias, ora inúteis. Humor há pouco, também não prometemos lágrimas.

Pouco é pouco, muito é muito. Aqui quase sempre é pouco e não tem ninguém chorando por isso.

Os sentimentos por aqui tratados são técnica e imitação, são o fingimento sincero da dor de seus personagens. A ficção aparenta realidade, mas continua ficção. A realidade permanecerá sempre inexplicável.

 Agora é só ler.


sábado, 20 de agosto de 2011

Ah!

Ah, se eu fosse!
Se eu tivesse
Se eu pudesse
Se eu quisesse
Se eu soubesse...

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Jorge Amado

Jorge Amado foi o primeiro escritor baiano com o qual tive contato, li quase de uma vez dez obras do escritor. Viajei com sua ficção pelos terreiros de Salvador, a cidade baixa dos pescadores pobres e das meretrizes, pelo sertão seco do preconceito, pelo coronelismo dos donos das roças de cacau, de fumo, de cana. Amado mostra o baiano e o mais pobre, simpatiza com os dois, denuncia o patriarcado e o protecionismo sem se divorciar deles. Ele é ao mesmo tempo o vate que bebe nas mesas dos rotary clubs e o vagabundo que cai na sarjeta na beira do cais.

terça-feira, 2 de agosto de 2011

A ordem da fila

Eram 7 horas. Da manhã. O vento frio não aliviava o enjôo e a calçada ficava no caminho tentando fazê-la tropeçar. A mulher baixinha e velha do guichê respondia que "sim" à sua pergunta apertando o óculos no rosto naquele gesto clássico de quem usa óculos. 

- Sim, é hoje. Não, não agora de manhã. À tarde. Posso sim, qual seu nome? Costa? Cravo? Certo. Às duas.

Faltavam seis horas. Cinco horas e quarenta e quatro minutos. Saiu para a rua. Andava devagar para deixar o tempo andar mais rápido. O vento não soprava mais frio, nem soprava. O sol esquentara e queimava o rosto escondido atrás dos óculos escuros. Um prédio alto tapou o sol e o dia virou noite pelas lentes escuras. Passou o prédio e o sol voltou.

domingo, 24 de julho de 2011

Entre as palavras existem pausas silenciosas

No começo foi a fala aberta
sem pejo
a sinceridade infantil

Depois escolheu melhor as palavras
cortou os palavrões
e os adjetivos bobos

Então passou a selecionar as idéias
adequá-las ao contexto e ao interlocutor
conformou as frases a um público alvo

Chegou à omissão total
de idéias e palavras
adotou o mutismo cedendo à chantagem das opiniões divergentes
pronunciava somente os monossílabos da concordância


Calou-se.







sexta-feira, 22 de julho de 2011

Fiascos do fim do mundo


Naquele dia por acaso resolveram promover o Fim do mundo. Em hora imprópria e sem a pompa dos símbolos bíblicos. Fim de mundo fajuto: sem anjo nem arcanjo tocando trombeta no céu, nenhum dragão de sete cabeças cuspindo pragas do Egito. Esqueceram de fazer nascerem os doze bezerros pintados de ouro com três cabeças cada. Não contrataram a Santa para se vestir de Prostituta e parir um Messiazinho ao avesso para trazer ao mundo os consolos da destruição total. 

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Um Zé

De onde vêm os Zés?
Eles vêm de qualquer parte
especialmente de onde ninguém espera que saia um Zé.

Nasce um, nasce dois, nasce três e.... zás
dá de nascer um Zé.

Porém, o Zé é necessário, sem o Zé o país não anda.
Ele é ecológico, ele é econômico, ele é ergométrico, ele é aerodinâmico.
Sem Zé nada funciona.

Matem um Zé e ganhem cem anos de urucubaca.
Case com um Zé e é marido pra vida toda.
Nasça de um Zé e compartilhe do sangue da raça.

Viva o Zé! Sobrevivam os Zés!
Libertem os Zés!

Avante Zé!



(Repostado para comemorar o aniversário de um Zé muito querido)

O mistério da porta fechada


Desde pequena a mãe lhe recomendava que mantivesse a porta da frente fechada. De manhã ou à tarde, na saída ou na entrada, passasse e fechasse a porta. Olhasse pela janela antes de abrir a porta. Pergunte sempre quem é. Nunca diga que está sozinha em casa. Fale que sua mãe está ocupada e não pode atender.

Quem lavava a calçada era a chuva. O lixo era o pai que colocava pra fora quando saía para o serviço. O muro era alto e a menina brincava no quadrado de terra preenchido com plantas ornamentais sem desconfiar do que se passava na rua. A rua era de terra e a camada fina de poeira vermelha assentava nos móveis. A mãe maldizia a poeira e a rua. Gostaria de viver onde não passassem carros.

O sol baixava e a conversa das mulheres sentadas nas calçadas atrapalhava ouvir a televisão. A mãe maldizia as vizinhas e o seu conversar. Gostaria de viver onde não passasse gente.

sábado, 11 de junho de 2011

Visitas


O sol invade o biongo pelos vãos rachados das telhas. Cozinha os miolos calvos do corpo caído no chão. A poeira levanta com o sopro do vento que passeia na saleta, levanta e cai devagar e torna a levantar. É poeira luminosa, saudosa da vassoura, alegre pela luz visitadeira. O olho acompanha a luz e a poeira, só ele mexe no corpo, a vida se escondeu nele. O olho sonha com a chuva. A chuva matará a poeira, esconderá o sol e molhará as telhas. As telhas inchadas vazarão a chuva para dentro da saleta onde o olho se esconde e espera a hora de lavar das vistas a poeira.

sábado, 28 de maio de 2011

Visão de um mundo sem seiva



Os bebês ressequidos abandonados na beira das estradas sendo devorados pelos carrapatos. As mulheres arqueadas pelo peso da lenha e da água. O fogo sendo aceso para  cozinhar comida pouca.  

A roça de feijão morta no tempo das flores. As vagens deformadas, cobertas  de ferrugem preto. Os grãos apodrecidos pendentes dos sabugos. A fartura de insetos perfuradores construindo seus casulos sobre os caules. O seu único filho nascido vivo abandonando a pobreza. A  temporada de chuva  voltando sem ter quem carpisse o mato. As crias das vacas sendo amamentadas no meio da lama.

Todas as memórias, todas as boas e más lembranças, todas apodreceram juntas nos pedaços alterados de seu corpo.

A melhor parte do seu ser deteriorava-se dia-a-dia, desgraça a desgraça, segundo a segundo. Só mesmo a morte para acabar com tanta feiúra. Tristeza muita para esperança pouca é mau agouro.
Permaneceu imóvel, horas, olhando fixo para o candeeiro pendurado no teto de madeira negra. 

Tentou se mover e havia perdido o controle sobre os membros. Queria se virar e ver outra coisa além do candeeiro, faltava força. Horas. Concentrou toda a energia para mover o tronco, tombou na serragem que cobria o piso. Seu corpo era algo fora de seu controle. Mais comprido, mais pesado, as articulações funcionavam diferentes. Dentro de si tudo mudava, os ruídos das suas entranhas confundiam-se com os trovões da tempestade que se aproximava. 

Nem uma alma, nem uma alma vinha lhe visitar. Morreria só.



(A foto é do Paulo Anjos)

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Mundos e mundos e mundos

Aceitar o novo, encontrar novos significados para coisas velhas. Reaproveitar o excedente em coisas úteis, transformar idéias. Somos habituados a entulhar nossas casas e nossas mentes de objetos inúteis, de valor questionável, troféus e lembranças dispendiosas de tristezas passadas. Buscamos estar em ambientes barulhentos e agitados para evitarmos a solidão de nossos próprios pensamentos vazios, mas quando encontramos o silêncio, ele nos atormenta com nossos pecados, porque acreditamos no pecado, porque acumulamos sentimentos inúteis, evitamos sentimentos sinceros, nos envergonhamos dos nossos próprios sentimentos. Então somos assombrados pelo que não compreendemos, pois não nos permitimos compreender.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Novamente o silêncio

O silêncio novamente invade o quarto.
Revira as roupas e rasga os lençóis.
De silêncio precisava em horas marcadas.
Mas não o silêncio destruidor de paz.

domingo, 2 de janeiro de 2011

Revista de Cândido Sales | Cândido Sales sob um olhar curioso: fatos, impressões, retratos.

Deixo o link do meu novo blog no Wordpress, nada que vá interferir aqui com o Literatices. É só uma tentativa minha de dividir minha atenção entre a ficção e a realidade.


Revista de Cândido Sales | Cândido Sales sob um olhar curioso: fatos, impressões, retratos.