quinta-feira, 2 de abril de 2015

Uma janela para qualquer lugar


Nasci filha de uma operária na grande São Paulo. Na nossa casa, havia alguns livros muito antigos, comprados de segunda mão pelo meu tio, único da família a cursar além do antigo ginasial. Eram livros de física, química, sistemas elétricos, todos com pequenas ilustrações de maçãs caindo de árvores, homens levando choque e moléculas se dividindo e se reunindo. Os meus preferidos eram os de inglês, porque mostravam histórias completas de crianças que iam a lugares e apontavam para os objetos dizendo seus nomes. Lembro bem de uma ilustração em que um caçador em pé numa canoa atirava em patos, ele ia contando o número de patos que caíam dentro da canoa, até a canoa ficar pesada demais para que o caçador se mantivesse equilibrado sobre ela. No último quadrinho, um enorme crocodilo se aproximava da canoa com cara de faminto e com um balãozinho de pensamento escrito... “One...”
Assim se passou a minha primeira infância. Estou certa de que a televisão exerceu maior influência sobre mim neste período, e talvez pela vida toda. Devo ter tomado conhecimento dos maiores clássicos da literatura pelos desenhos. O Pica-pau me ensinou sobre Pancho Villa, Dulcinéia, Roma, Nero, a Torre Eiffel; Chaves e Chapolin Colorado eram de fato meus heróis, imitávamos as estripulias de ambos, eu era a Dona Florinda e meu irmão era o Professor Girafales, e assim alternávamos até que cada um ocupasse todos os papéis e falas geniais.
Então, um dia, minha mãe decidiu que eu devia aprender a assinar meu nome, porque eu ia tirar meu primeiro RG. Foi um custo, o tempo que eu havia passado no jardim de infância não tinha me ensinado muita coisa. As professoras me empurravam cadernos para copiar as letras e riscar em cima de tracejados e colorir figuras, eu detestava tudo, inclusive a escola e as professoras. Elas gritavam com as crianças e por mais que eu ficasse quieta ainda podia ouvi-las gritar com as outras crianças. Mandavam a gente fazer fila e eu não gostava de filas. Mandavam a gente cantar, mas eu não gostava de cantar na fila, então eu só mexia a boca fingindo que estava cantando, e as professoras gritavam novamente para nós cantarmos alto. Minha mãe decidiu me tirar da escolinha, afinal, eu nem estava aprendendo a assinar meu nome, eu passava metade do tempo da aula chorando pra ir pra casa e é claro que as professoras diziam isso pra minha mãe. O caso é que a minha mãe devia achar que eu era muito nova e chorava de saudade dela. Estava enganada, eu estava acostumada a ficar longe dela, porque ela sempre trabalhou fora, quem cuidava de nós era minha vó: eu chorava porque não gostava da escola.
Minha mãe comprou uma coleção de livros infantis que eu guardo comigo até hoje. Contos de fadas, fábulas do mundo todo, clássicos. Ela lia pra gente todas as noites antes de dormir. Aos sete anos eu fui para a escola pública. Tia Rosângela foi minha professora da primeira série. Como todos os meus coleguinhas eu não sabia ler, só conhecia as letras. Não me lembro de como, mas em três meses, assim conta minha mãe, eu já estava lendo. Daí ela pedia pra eu ler as histórias para ela e pro meu irmão. Eu estava lendo as mesmas histórias que antes só podia ouvir.
Veio a segunda série, minha mãe comprou um Atlas Mundial pra gente. Meu irmão era apaixonado pelos mapas. Então eu tive a ideia de ensiná-lo a ler para ele parar de ficar me pedindo para dizer o nome dos países. Eu tentei. Peguei meus cadernos do ano anterior e repassei as lições, falei das sílabas,  pouco tempo depois ele lia tão bem quanto eu.
O meu irmão virou a atração lá de casa, os tios nos visitavam e ficavam perguntando a capital dos países para ele, e ele os sabia de cor (até os da África e Ásia). Eu sabia alguns também, mas ele era três anos mais novo do que eu, deviam achar que na minha idade saber das coisas era de obrigação.
Veio a terceira série e nós mudamos para o litoral. A escola era estadual e tinha uma biblioteca que deixava a gente levar os livros para casa. Comecei a pegar os livros emprestados num dia e devolver no outro dia. O professor que cuidava da biblioteca brigou comigo, ele achava que eu subia até lá só pra matar aula, não acreditava que eu lia o livro todo de um dia para outro. Mas eu disse que lia mesmo, e contei a história do livro. Ele resolveu me emprestar mais de um livro por vez. Claro, eram livros pra criança. O maior devia ter só uma 50 páginas com letras enormes.
Sempre ri e chorei com os livros que li. Senti medo, venci vilões, refletia sobre as grandes dificuldades do mundo e como era bom estar segura dentro da minha casa, tendo aquela janela aberta para o mundo, de onde eu podia enxergar qualquer lugar.

Continuei lendo, de tudo. Aprendi a gostar de quadrinhos. Nunca sobrou muito dinheiro para comprá-los, mas dava para pedir emprestado, pegar em bibliotecas. Resolvi cursar Letras, foi conselho da professora de português do ensino médio. Ela disse que eu tinha talento e não devia desperdiçá-lo. Acho que ela estava certa. Hoje eu tenho mais livros do que estantes, e olha que não compro livros há anos. Eu os leio pelo computador e pelo celular. Eles nunca foram tão brilhantes.

(Memórias Literárias escritas para um fórum de fomento à escrita e leitura)