domingo, 19 de abril de 2009

Sonho ígneo


Euforia. Fogo. Dor. Gritos e gritos, dor, dor. Fogo até o centro da dor.

Alguns de nós enveredam por trilhas que levam a uma vida puramente interiorizada, um filme velho projetado na parede velha, sonhos desaguando em sonhos, ideias atropelando ideias. Incorpórea, nossa mente é o centro de toda a nossa existência. Nosso corpo é um elo entre o lado de lá e este lado, os dois – corpo e mente – são tidos como inseparáveis, captação e processamento, comando e operação, sensação e reflexão. Apesar da interdependência entre estas duas esferas parecer indispensável, em ocasiões especiais pode ocorrer uma bipartição. Somente as funções mais primárias do corpo seguirem funcionando e a mente continuar trabalhando sem notícias da parte física. A dúvida é, para onde vai a consciência quando este desligamento ocorre? O que sabemos é fruto das nossas interações perceptivas ou do produto que a mente nos apresenta como representação dos dados sensoriais? É possível levar uma vida excluindo-se o corpo? Caso fosse possível, esta existência seria uma prisão ou uma libertação?

As chamas arderam, fumegaram a carne, aplainaram os montes, terraplanaram os vales, inundaram as fossas, soterraram as fozes, destroncaram as partes. As partes se espalharam e jamais se reajustaram.


Mãos (piedosas?) transladaram o corpo, imitação torpe do original, para onde os olhos não precisassem se desviar da visão grotesca e os cuidados médicos simulassem a vontade da sociedade de manter vivo um ser que ela não desejava mais movendo-se em seu seio.

Até a misericórdia humana é mesquinha.
Acordei... não, corrijo, eu não acordei. Continuei dormindo. Dormir não classificaria o estado em que fiquei, uma parte do sono é repouso e relaxamento, parcela muito pequena é destinada aos sonhos. O meu corpo desejava morrer, a estúpida mente teimava em agonizar. Dividiram-se para preservarem seus orgulhos, só haveria reconciliação mediante um acordo cheio de cláusulas tácitas e irrevogáveis. Criou-se aqui uma lacuna enorme nas minhas já comprometidas memórias, pois do corpo eu só tive notícias depois, por onde ele andou foram os prontuários médicos e os recibos de pagamento que me contaram.

Esqueça esta idéia que passou por tua cabeça. A mente não fugiu do corpo para negá-lo, foi o corpo dilacerado que precisou expulsar a mente cheia de minúcias para curar-se em paz. Neste ponto o corpo é superior à mente, pois ele enxerga as próprias limitações e as respeita, reserva os extremos de esforço para os momentos críticos. A mente quando encontra os seus limites se parte, entra em ebulição e evade-se, até que encontra uma barreira que a faça condensar, jamais volta à forma anterior. Creio que isto tenha acontecido comigo, não tenho certeza, não sei bem se me recordo exatamente de todos os acontecimentos da minha vida, sinceramente, não sei explicar o que se passou no tempo em que dormi. Eu sei o que veio depois, lembro das minhas ações, posso relatá-las, mas lembrar não é explicar as razões. Então, quando chegar a hora eu poderei contar os fatos, mas você terá que se contentar com as explicações que eu inseri depois, ou melhor, que eu insiro agora no relato. Isto porque na época eu apenas agia, sem preocupar-me com justificações ou motivações, muito menos com coerência ou lógica, agia por impulso, por necessidade. Parar e cogitar sobre o que fazer no momento corrido nunca foi o meu forte, todas as minhas divagações foram sempre posteriores. É aí que você é obrigado a contentar-se com o que eu arrazoei sobre as minhas ações passadas, assumir o risco de que eu lhe conto com os olhos e as justificações de hoje coisas que fiz há muito tempo atrás. Vou me desculpar, proteger, e torcer a história em meu favor o máximo que puder, conforme a minha conveniência, pois até nos momentos em que eu estiver apresentando meus erros e fraquezas, pode ter certeza, algum mecanismo íntimo me faz ter orgulho deles, admirar cada uma das minhas palavras como se fossem ditas pelas bocas dos anjos.

Não se preocupe com isto agora, em acreditar ou duvidar da minha isenção, como eu te disse, eu própria não tenho certeza destes detalhes hoje, a preocupação pode ficar para depois, afinal, ainda estamos no ponto em que eu não havia acordado, a época em que o mundo foi só de ruídos abafados e vozes recortadas, em que noite e dia foram um só e as lembranças se confundiram com os sonhos, misturadas as coisas que foram com as que poderiam ter sido, ou seja, uma época exatamente igual a todas as outras da minha vida com o diferencial que no lugar em que eu estava não haviam testemunhas para me contradizer, havia somente uma imagem de mim e as imagens que eu fazia das coisas que não eram eu.


(Imagem: Grainger Boogerman, Inferno)

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Um brinde ao tédio!



Ao tédio, um brinde!

Um amigo muito querido dedica seu blog ao inútil do dia a dia. A inutilidade cotidiana da repetição do obrigatório e do pouco notório. O tédio frente a um mundo que gira em torno do mesmo ralo, entra por ele e sai mais lá na frente renovado em seu lodo indelével. Então, nós dois, que nos acometemos mui frequentemente pelo tédio, sempre nos debruçamos sobre nosso tédio e discutimos sobre as saídas para tal posicionamento diante do mundo. Eu uma entediada apocalíptica resolvo a equação besta deste mundo na imagem de um grande final trágico, esmurro o tédio com minha visão quase utópica de que a destruição total pode nos levar a algum lugar melhor, no mínimo mais interessante. Por misericórdia, seja este pós-mundo menos imbecil do que o atual!

Em minhas prolíferas antevisões destas agitações cósmicas - pura vontade de ver a mudança ocorrer, o ralo exalar perfume de flores depois de destruído, a humanidade renascer aprimorada depois do cataclisma - ou seja, nestas tolices românticas bem típicas dos amantes de uma destruição renovadora, aborda-me o meu entediado parceiro dos ócios criativos, e faz-me pensar que deveria o mundo inteiro ser dedicado aos momentos de ócio, pois é neles que fugimos da reme-reme teleguiado do dia-a-dia e nos lançamos aos mares imprevistos da invenção e do delírio.

O ócio e o tédio só acometem aqueles capazes de erguer a cabeça do esgoto dos dias, olhar para o céu encoberto pela poluição e dizer: "Cara, esta vida é um saco!" Não porque está sem dinheiro, porque está sozinho, porque não tem nada para fazer, porque tem trabalho demais para fazer, porque o par romântico está mais para parceiro de pôker, porque o imposto de renda consome tudo.... dizemos porque é verdade! Verdade dolorosa, depois de dita não muda em nada a situação mas prova que não perdemos tempo a dar cores bonitas ao cinza preto e branco do igual ao de sempre.
Inquietem-se com a igualdade dos dias! Enfureçam-se com o ligeiro passar das horas! Quebrem as correntes dos pensamentos prontos!Entediem-se e movimentem-se! Achando a vida uma chatice é que nos reviramos para viver dias menos chatos!

Um brinde aos companheiros do tédio.


(imagem: Paranoic Visage, Salvador Dalí)

quarta-feira, 15 de abril de 2009

Prisioneira do medo



E havia o medo. À noite, sozinha com o menino, acordava amedrontada com os ruídos das árvores e as luzes dos carros passando na avenida próxima, sentia que não estava sozinha, uma presença gelada, uma presença que a observava e a cobiçava, sim, sentia que alguma coisa dentro do escuro a desejava. Um estremecimento entrava pela planta dos seus pés e rastejava joelho acima, arranhando pelo roçar de uma coxa com a outra, repuxando o baixo-ventre, apertando os seus pulmões. Sem ar (seria medo de respirar?), os músculos começavam a doer pelo esforço de manter-se imóvel, sentia cada fibra da roupa sobre seu corpo, a garganta secava, os olhos ardiam sob as pálpebras, os lábios se apertavam, a língua parecia enorme para caber dentre os dentes, os dentes pareciam soltos e os mamilos formigavam doloridamente. Passavam-se horas nesta imobilidade exasperante, sem que criasse coragem para mover qualquer parte do corpo, sem que levantasse para certificar se a casa estava vazia, sem que averiguasse o sono do filho que dormia no quarto ao lado.
Nada disso possível. Nas noites em que aquela presença terrificante não invadia seu corpo, o filho chorava toda a noite, não havendo chás ou consolos que o calassem. Dormia as noites em que passava em claro no tapete ao pé da cama do filho, tremendo de frio, marcando a pele morena com marcas do chão duro, resfriando-se e ficando febril. E a continuidade daquela angústia era uma certeza desesperadora, nenhuma saída para fora da própria vida. Apelava para todos os paliativos morais e farmacêuticos da modernidade, nenhum resolvia em nada a sua dor. Mas aquele passo a levaria além, muito além dos limites da prisão imaginária que nos retém passivos. Seria um passo na direção da liberdade. O resto dos dias seria de liberdade e solidão, nada mais de sonhos e pesadelos, somente o vazio da existência sem reflexão. Caminhou então para o precipício de seus dias e mergulhou na calma da incerteza plena.
(imagem: Angustia, Salvador Dali)