A
picape velha saltava e rangia na estrada de terra. A poeira do cascalho da
estrada se erguia no ar e formava uma neblina fina e amarelada que obrigava os
automóveis a acenderem os faróis às três da tarde. O movimento na estrada
alcançava picos depois do meio dia e depois das dezoito, quando a mão dupla
cheia de ladeiras e curvas e curvas em ladeiras se tornava uma arapuca pronta
para disparar contra os foliões alcoolizados. Placas amarelas indicavam a
direção da próxima curva, fincadas sobre o mato recém roçado das margens da
estrada.
Naquele
ano a vegetação estava seca e cinza, quase estorricada, sem nenhum açude para
amenizar a paisagem de caatinga e seca e cercas de arame farpado. A madeira
mais grossa que se via por ali era a dos mourões das cercas, enegrecidos pelas
queimadas anuais, herança de um passado de mata virgem há muito devastada.
Do
alto avistaram a pequena vila, não mais do que dez casas sobreviventes, filhas
bastardas de um passado esquecido de caminho de tropas, enfeitadas somente por
uma velha igreja em ruínas, teimosa por manter-se sobre suas bases de tijolos crus.
Descendo a ladeira, podia se notar uma ou outra construção nova: os remediados
da sede do município vinham erguer suas casas de veraneio em desordem, obviamente invadindo
a área de preservação das margens do rio.
O
rio de águas barrentas era só uma faixa rasa de vinte metros de largura, os
moradores atravessavam com água nas canelas nos locais certos. Há um par de
anos ninguém morria afogado dentro de um dos traiçoeiros poços estreitos e
profundos, mais ou menos conhecidos de todos os banhistas experientes,
teimosamente ignorados por crianças e adolescentes inconsequentes. Aquele ano
novamente o rio não engoliu ninguém naquele ponto, pois o poder público
contratara salva-vidas e demarcara as áreas perigosas com bandeirolas. O rio
passaria fome, não fossem os bêbados que o faziam de cama e os traficantes que
nele desovavam seus desafetos.
Teríamos
somente mais um ano de gritaria e festa, de turistas seminus e completamente
embriagados bebendo mais cerveja e uivando para os dançarinos obscenos de cima
do palco, senhoras com as coxas de fora comprando quinquilharias e guloseimas
nas barraquinhas, moças e rapazes entrando e saindo escondidos dos arvoredos à
beira d’água, crianças correndo com sorvetes e baldes de areia entre as
piscinas.
Parecia
mesmo que o carnaval daquele ano não teria nenhuma novidade. Mas um dos
caminhões que saíam com a carroceria apinhada de homens e mulheres bêbados e
crianças de colo e senhoras de chapéu de palha não encontrou o fim da estrada.
Ele correu como louco saltando pedras e aterrissando derrapante sobre as camas
de areia fina, e num desses saltos se viu em frente a um ônibus de faróis
sonolentos que subia a ladeira pela qual o caminhão queria descer.
Desembestado, o caminhão não teve freios para parar, e tentando evitar o
impacto fatal, não desviou por centímetros, encabeçando com a outro gigante
metálico e arremessando a todos os que nele iam dependurados contra as cercas e
os espinhos que naquele sítio faziam morada.
Então,
viu-se um festival de corpos voadores, e pousos forçados que deixavam em seus
rastros peles e carnes ensanguentados. Teve quem saiu sem arranhão e quem
quebrou fêmur, bacia, rótula, teve quem ficou sem cara, sem roupa, sem bunda,
sem tampo. O caminhão dobrou-se todo sobre o próprio eixo metálico e mais tarde
deu testemunho de que a coisa podia ter sido muito pior. E o ônibus quietou-se
calado, aliviado por ter levado só esbarrão e não ter ferido nenhum de seus
três ocupantes. A
estrada virou uma folia de luzes vermelhas e sirenes assustadas, de uniformes
verdes e brancos indo e vindo. Formaram-se duas comitivas, uma em cada direção,
donde os foliões que não participaram do acidente assistiam à muvuca de
camarote, meio que irritados e cansados pela espera prolongada. Aquela ladeira
nunca se tinha visto tão cheia de gente e de cores, irrigada por sangue jovem e
marcada por tantos pés confusos.
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