domingo, 10 de fevereiro de 2013

Carnaval


A picape velha saltava e rangia na estrada de terra. A poeira do cascalho da estrada se erguia no ar e formava uma neblina fina e amarelada que obrigava os automóveis a acenderem os faróis às três da tarde. O movimento na estrada alcançava picos depois do meio dia e depois das dezoito, quando a mão dupla cheia de ladeiras e curvas e curvas em ladeiras se tornava uma arapuca pronta para disparar contra os foliões alcoolizados. Placas amarelas indicavam a direção da próxima curva, fincadas sobre o mato recém roçado das margens da estrada.

Naquele ano a vegetação estava seca e cinza, quase estorricada, sem nenhum açude para amenizar a paisagem de caatinga e seca e cercas de arame farpado. A madeira mais grossa que se via por ali era a dos mourões das cercas, enegrecidos pelas queimadas anuais, herança de um passado de mata virgem há muito devastada.

Do alto avistaram a pequena vila, não mais do que dez casas sobreviventes, filhas bastardas de um passado esquecido de caminho de tropas, enfeitadas somente por uma velha igreja em ruínas, teimosa por manter-se sobre suas bases de tijolos crus. Descendo a ladeira, podia se notar uma ou outra construção nova: os remediados da sede do município vinham erguer suas casas de veraneio em desordem, obviamente invadindo a área de preservação das margens do rio.

O rio de águas barrentas era só uma faixa rasa de vinte metros de largura, os moradores atravessavam com água nas canelas nos locais certos. Há um par de anos ninguém morria afogado dentro de um dos traiçoeiros poços estreitos e profundos, mais ou menos conhecidos de todos os banhistas experientes, teimosamente ignorados por crianças e adolescentes inconsequentes. Aquele ano novamente o rio não engoliu ninguém naquele ponto, pois o poder público contratara salva-vidas e demarcara as áreas perigosas com bandeirolas. O rio passaria fome, não fossem os bêbados que o faziam de cama e os traficantes que nele desovavam seus desafetos.

Teríamos somente mais um ano de gritaria e festa, de turistas seminus e completamente embriagados bebendo mais cerveja e uivando para os dançarinos obscenos de cima do palco, senhoras com as coxas de fora comprando quinquilharias e guloseimas nas barraquinhas, moças e rapazes entrando e saindo escondidos dos arvoredos à beira d’água, crianças correndo com sorvetes e baldes de areia entre as piscinas.

Parecia mesmo que o carnaval daquele ano não teria nenhuma novidade. Mas um dos caminhões que saíam com a carroceria apinhada de homens e mulheres bêbados e crianças de colo e senhoras de chapéu de palha não encontrou o fim da estrada. Ele correu como louco saltando pedras e aterrissando derrapante sobre as camas de areia fina, e num desses saltos se viu em frente a um ônibus de faróis sonolentos que subia a ladeira pela qual o caminhão queria descer. Desembestado, o caminhão não teve freios para parar, e tentando evitar o impacto fatal, não desviou por centímetros, encabeçando com a outro gigante metálico e arremessando a todos os que nele iam dependurados contra as cercas e os espinhos que naquele sítio faziam morada.

Então, viu-se um festival de corpos voadores, e pousos forçados que deixavam em seus rastros peles e carnes ensanguentados. Teve quem saiu sem arranhão e quem quebrou fêmur, bacia, rótula, teve quem ficou sem cara, sem roupa, sem bunda, sem tampo. O caminhão dobrou-se todo sobre o próprio eixo metálico e mais tarde deu testemunho de que a coisa podia ter sido muito pior. E o ônibus quietou-se calado, aliviado por ter levado só esbarrão e não ter ferido nenhum de seus três ocupantes. A estrada virou uma folia de luzes vermelhas e sirenes assustadas, de uniformes verdes e brancos indo e vindo. Formaram-se duas comitivas, uma em cada direção, donde os foliões que não participaram do acidente assistiam à muvuca de camarote, meio que irritados e cansados pela espera prolongada. Aquela ladeira nunca se tinha visto tão cheia de gente e de cores, irrigada por sangue jovem e marcada por tantos pés confusos.

No dia seguinte viria a quarta de Cinzas.

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