quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Sobre a verdade das coisas


Por que duas histórias contraditórias não podem ser verdade? Afinal, todas as coisas são verdadeiras e falsas, são yin e yang. E o que importa? Se o sol nascer e se pôr todos os dias, e a chuva cair e água dos mares evaporar e tornar a chover, e as plantas crescerem, os animais as comerem, morrerem, virarem esterco para adubar as plantas, se tudo isso pode acontecer sem interferência de crenças ou explicações, então, por que questionar o mundo?

No princípio, o mundo era somente dúvida e ignorância. Não porque faltasse explicação, mas porque os homens tinham pouco conhecimento. Com o tempo, os homens substituíram o medo e a superstição pelas explicações. O universo é infinito, o saber também; sempre haverá coisas para se descobrir, portanto, dizer “isto é possível, isto não” é declarar algo sem conhecimento de causa. Tudo é possível, o verdadeiro pode ser falso e o falso verdadeiro, nada é absoluto. Hoje, podemos jurar de joelhos que uma coisa é certa. Amanhã, se nos obrigarem, juraremos que é errado. Desse jeito, certo e errado são convenções arbitrárias em alternância, uma hora são, outra hora não são. Quantas vezes assistira a tudo mudar e ficar igual outra vez?

Provas havia do seu ceticismo, porém, a sua descrença não atingia toda a realidade circundante, recaía especialmente sobre as pessoas. Sobre gente não há nada novo para acrescentar nos anais da história humana, sobre a natureza e a ordem universal sempre haverá. O Homem jamais terá conhecimento de tudo, deve, então, contentar-se com o conhecimento parcial e acostumar-se a acolher o impossível como possível quando chegarem as ocasiões.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

Noite



Inúmeras noites enquanto crescia, parou para espiar o céu. O céu não guardava as respostas às suas dúvidas, como qualquer céu noturno posava de ser completamente escuro sem o ser, traído pelas nuvens e luzes da cidade. De suas observações noturnas, aprendeu que as respostas nunca estavam na direção em que olhava, estavam sempre onde não podia achá-las; a verdade é que a vida era uma equação que só valia a pena enquanto não se desvendassem as incógnitas, assim, a linha das respostas prosseguia vazia.

Aquela era mais uma das noites em que olhava o céu para afastar a alma do chão, sentir por algum tempo que a sua vida não era sua, era de outro, os problemas eram de outro, as conseqüências e decisões pertenciam a alguém que não a sua própria pessoa. Por infelicidade, esse fingimento nunca se sustentava por muito tempo, entendia logo que a fantasia era excessivamente agradável para se aproximar da realidade, não enganava por sua falsidade, faltava nela a veracidade desagradável do real. Fingir que não existia a dor não a curava.

A última vez que olhara o céu apenas para achá-lo bonito estava perdida em sua memória, junto de outras sensações agradáveis que só nos alcançam uma vez, jamais se repetem, acontecem com o único objetivo de nos fazerem sentir falta delas e buscarmos por sua repetição. Os momentos agradáveis existiam para nos fazer sofrer com sua raridade.

Já fazia tanto tempo que o céu não era simplesmente o céu e o vento simplesmente o vento. Agora todos os elementos da natureza estavam conspirando para reavivar as suas frustrações. O vento soprava por toda a parte para deixar claro que era capaz de ir a qualquer parte. O céu era uma permanência imutável para que os insignificantes seres mutantes abaixo dele o invejassem e espiassem. Não sabia explicar a qual dos dois desejava assemelhar-se.

Era noite, o dia forçosamente renasceria lá fora. Em seu íntimo, seria sempre noite. Não para utilizar o contraste escuridão e luz, era noite porque os seus sentidos jaziam adormecidos, indiferentes aos apelos recebidos. Um sorriso de agradecimento, um pedido de desculpas, um suspiro de ansiedade, tudo ressoava opacamente em seu côncavo e morria antes de surtir algum efeito. Era noite, as reações ficavam agendadas para o amanhecer. Era noite, o negrume em sua alma empalidecia todas as cores ao redor. Era noite, as emoções atrofiavam pelas passagens trancadas e estreitas dos seus subterrâneos.

A noite não apenas ESTAVA em sua vida, temporariamente estacionada para aguardar algo vindouro. A sua vida ERA uma constante e opressora noite, um véu dividindo o seu interior do resto da existência; constituía a sua essência indecifrável e silenciosa.

Todos os barulhos estavam presos do lado de fora, sob a redoma havia somente o ruído das moléculas de ar se movendo e carregando as partículas de poeira que atravessavam multicores por entre os prismas da luz indireta que lá chegava. Os ressentimentos também lá estavam, vaporizados e condensados nas paredes de suas cordas vocais.

A noite invadiu a sua vida e prometia permanecer.

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Aos que partem... boa viagem.

Por que todos nós lamentamos quando alguém finalmente morre? (Creiam, o finalmente está muito bem colocado aí, há coisa mais final do que a morte?) Desde que nascemos nos aprontamos para esta aventura única da qual não precisaremos retornar. Vamos para sempre para qualquer parte que indubitavelmente será muito melhor do que aqui.

Miseravelmente nos arrastamos por esta vida, tentando ser bons, tentando ser notados, tentando agradar, tentando fazer a diferença. Depois de muito tentar sem nunca obter exatamente o que desejávamos ou obtendo e descobrindo que não era nada daquilo que esperávamos, então aprendemos a nos contentar com o pouco que alcançamos.

É sempre pouco perto do que poderia ser, mas é muito em comparação à maioria dos demais que padecem da vida. Porque também o momento da morte é o momento em que os que ficam pesam todos os nossos feitos. Qualquer coitado é invejado depois de morto, não por estar morto, mas porque contrastada à imobilidade da morte, qualquer atividade em vida parece muito boa. A verdade é que depois de mortos, tudo o que conquistamos ganha maior importância, nossos defeitos são perdoados, nossos feitos valorizados. É depois de mortos que percebemos que afinal, valíamos alguma coisa. Ainda valeremos no além-vida?

Não é importante, pois para onde vamos o valor não vale nada. Só o que vale é a nossa memória que fica para os que nos conheceram. Fui uma boa mãe, filha, esposa, amiga, vizinha. Vou fazer falta? Guardarão retratos meus? Alguém dirá: “Na época da falecida eu era feliz?” Vão continuar rindo das minhas piadas?

Uma coisa é certa, depois que nos formos, sobrará mais espaço no mundo para os que estão vindo e os que já estão por aí aglomerados.

Talvez a matéria desta crônica soe muito mórbida, e não poderia surtir outro feito, afinal, estamos falando sobre a morte. Desejo apenas que todos admitam: as despedidas são sempre ternas pois os que nelas se reúnem prefeririam que ficássemos e precisam se apegar às nossas virtudes. Estivessem reunidos nossos desafetos, chegariam rapidamente à conclusão de que demoramos tempo demais para passar a vez da existência.

Enfim, nossa vez não veio ainda, ainda há tempo de nos ocuparmos em deixar boas memórias aos nossos futuros ex companheiros nesta viagem terrena até a viagem definitiva.

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Visão cega


Muito tempo em solidão torna a pessoa mais e mais solitária, porque em seu caso, a solidão era uma forma de manter intactas as suas lembranças e seus hábitos, afastar-se de contato humano verdadeiro formava uma litania em sua própria homenagem, um modo de sacralizar-se, evitar que outras pessoas conspurcassem o seu íntimo com a tolice vã das gentes.

Explique-se que não foi uma figura saltada de páginas oitocentistas, não se refugiou nos campos bucólicos, não guardou castidade ou cultivou a tuberculose, não se envenenou com a bílis negra dos folhetins ultra românticos, tampouco suspirou por encontrar uma alma gêmea. Embebeu-se da solidão moderna, sentindo-se só em meio a multidões, falando muito sem jamais dizer nada de verdadeiro, tratando com os outros sempre assuntos que não lhe interessavam mais do que a cor dos cadarços de um João-ninguém.

Deixou crescer os cabelos até a metade das costas e os tratava com exageros cosméticos, ouvia dia e noite música alta de batidas monótonas e metálicas, que nada comunicava ao cérebro, mas fazia vibrar seu corpo. Intoxicava-se com bebidas coloridas, estrangeiras, para negar que se satisfaria com o álcool nacional. Bebia apenas para provar ao mundo que era capaz de beber, pois não sentia nenhum prazer com isso, a bebida em lugar de turvar os sentidos, aguçava-os, fazendo com que prestasse maior atenção na venialidade das pessoas ao seu redor, desprezando-as com mais força.

Mais crescia o seu desprezo pelos outros, maior se tornava forte a sua autoconfiança. Ansiava viver em um mundo em que não houvesse ninguém além de si. Não um mundo povoados por réplicas, mas um mundo de uma pessoa só. Com o sol nascendo e se pondo para si, os rios correndo por si, os pássaros cantando somente para os seus ouvidos, a vida brotando e perecendo em sua honra.

Perdoava, então, os outros viventes por suas existências incômodas, e dignava-se a sentir piedade deles. Afinal, um mundo somente seu era exigir demais.

E naquela manhã se deparou com a inconveniência de dividir o mundo com outras pessoas: precisaria pedir ajuda para realizar uma tarefa. A peça do carrossel do parque era demasiado pesada e grande para ser movida por uma única pessoa. O uso de polias e cordas não bastaria, pois o tempo demandado para erguer um apoio seria desperdiçar tempo e material. Faltava-lhe, inclusive, a chave correta para os parafusos que prendiam a peça ao todo do brinquedo. Outra pessoa seria indispensável. E a pessoa mais indicada seria o homem de rosto desfigurado.

Existiam alguns motivos para que detestasse a idéia de pedir auxílio ao outro. Poderia alegar que seu povo foi acusado injustamente de bárbaro por interesse estrangeiros em usurpar a terra de seus antepassados (mais ou menos o que houve na América, gente inculta e sem alma não precisa das riquezas da terra, vai usar como? Só para alimentar seus zilhões de filhos?); poderia ainda dizer que a gente da qual o desfigurado descendia dominavam o poder, criaram e mantiveram leis que desprivilegiaram e boicotaram a população nativa em prol dos colonizadores, promovendo um estado de miséria e atraso que até hoje mostra suas marcas nos índices de desenvolvimento humano destes povos. É claro, para a lógica dos colonizadores esse devia ser o curso natural das coisas, subjugar os supersticiosos e atrasados em benefício dos desenvolvidos e evoluídos, da nação berço de filósofos, cientistas, artistas e personalidades que marcaram toda a história da humanidade. Que fiasco! O mundo inteiro baixando a cabeça para o gigante decadente. Nosso povo é tão desorganizado, tão bárbaro, tão inculto, que somos dos poucos povos no mundo capazes de resistir politicamente ao imperialismo que se arrasta e atravessa o finado século XX, e o que os civilizados fazem com nossos emissários, representantes dos ideais libertários? Encarceram como presos comuns, negam o privilégio de presos políticos, acusam de terrorismo. Assassinatos em off, ocupação militar, direitos políticos cerceados, é esta a democracia pela qual o mundo se bate. Então partimos para o terrorismo político e nos chamam monstros. Monstros? Nosso terror pode ter embrulhado muitos estômagos sensíveis, abismado muitas associações cristãs de moços e moças e todo este choque que se abate sobre as pessoas quando enxergam até onde é capaz de ir a raça humana. Mas acima de tudo, nosso terror serviu para nos fazer ouvidos, nos tornou fortes. A gratuidade do terror, esta sim é patética. Nosso terror foi libertário.

Mas nada disso contava, logicamente não, pelo contrário. Porque por mais que o destino dos povos influísse no julgamento entre os cidadãos, acima disso, a verdadeira razão para sentir repulsa pelo desfigurado era muito mais simples. Detestava a idéia de precisar dele para algo, porque sentia-se superior a ele. Despertava-lhe pena por sua condição humilde e aquela circunstância infeliz obrigava-lhe a pedir auxílio ao homem.

Entrou no quarto de piso molhado com receio, chamara através da porta pelo lado de fora sem resultados. Obrigou-se a entrar, a encarar a miséria do outro enrolado em uma coberta vulgar que pouco tapava o frio, e obrigou-se a acordá-lo com uma sacudidela.

O outro sobressaltou-se, e talvez levado pela invasão inopinada, ou pela reciprocidade por sua inimizade e asco, avançou em fúria cega. Mas suas fúrias possuíam uma visão perfeita, esquivou-se do arremate por milímetros e despregou um chute nas costas que o tolo deixou desprevenidas. O desfigurado tombou dentro da poça de água e os dois olhares se encontraram. Um espectador atento veria piedade e pesar nos olhos metálicos da criatura solitária. O que outro enxergaria dependeria de sua mente perturbada.

domingo, 24 de maio de 2009

Natural


- “Já fui uma flor perfumada, exalei todo o perfume do meu viço, hoje sou apenas a sombra do que fui. Minha beleza foi condensada em quilogramas de tecido adiposo acumuladas em pontos nada estratégicos do meu corpo. A idade levou tudo o que eu mais amava da minha existência, inclusive as pessoas que eu amava. Meus filhos (ingratos!) não fizeram mais do que alargar em quarenta centímetros os meus quadris. Meu marido, trocou-me pela primeira ninfeta que abriu as pernas para ele.”

Adorava ler trechos de seus diários para os seus alunos de literatura, para incentivá-los a criarem seus próprios diários. E para mostrar-lhes que nem tudo que se escreve de cunho emocional pode ser aceito como poético. A vida não pode ser poética, porque não é criação, ela simplesmente acontece em descontrole.

Fechou o caderno de anotações, abaixo os óculos para ver sem barreiras as caras pasmadas dos alunos do primeiro semestre. Eram na maioria garotinhas preguiçosas e rapazes afeminados, que achavam o supra-sumo da literatura os romances eróticos vendidos em bancas de jornais, ou as letras de roqueiros decadentes e suicidas. Cultuavam o lixo cult vendido pela mídia, para sentirem-se “cult”. Olhando para eles, preferia infinitamente os fãs de quadrinhos de terror, de filmes trash e música underground, conseguiam ser sinceros em suas preferências, não o preferiam isto ou aquilo para atender a alguma demanda comercial. Ser o único admirador de um artista decadente é saber exatamente do que gosta.

Soou o sinal para o fim da aula. Levantavam-se os alunos e voltavam para suas vidas. Voltava ela para sua vida também. Que vida? Um apartamento vazio. Arrumava os livros dentro da bolsa. Insistia em levar livros para sugerir que eles lessem e comprasse. Eram volumes inestimáveis, sem novas edições, que possuía desde os seus tempos de universitária. Diferentes dela os livros: a vida toda, deu a eles todos os cuidados para que se conservassem intactos, sem rabiscos, sem mofo, sem traças. Ela se deixara deformar, massacrar, massacrar. Quando chegou aos quarenta tentou recuperar o tempo perdido, usou cremes supostamente milagroso, pomadas, ungüentos, fez ginástica, dieta, mas o tempo não retrocedeu. Estava mais velha que os próprios livros. E sozinha.

Desceu as escadas do módulo de aulas, devagar, cuidadosamente. Falta de ar. Dor aguda na coxa direita. Nunca atendiam aos seus pedidos de só ensinar nas salas do térreo. De propósito, pensava ela, a jogavam para o último andar. “Imbecis. Daqui não me tirarão. Ensinar é a última coisa bela e útil que sou capaz de fazer, não vou me aposentar, quero morrer segurando um volume de Tzvetan Todorov, emborcar sobre o retroprojetor enquanto ele estiver exibindo as imagens das ruínas do Templo de Diana.”

Uma última passada na biblioteca para devolver alguns dvd’s. Petulância da bibliotecária recriminá-la pelo atraso. “Pensa que os seios pontudos e o traseiro durinho a fazem melhor do que eu. Piranha.” Na saída, avistou uma aluna dormindo sobre uma das mesas de leitura, sentada na cadeira, tronco reclinado sobre a mesa. Era quase hora de fechar e a moça num sono de morte. “A inútil da bibliotecária sequer dá-se ao trabalho de proibir que se durma no ambiente de leitura. Piranha preguiçosa.”

Reconhece a aluna de longe. A menina era um retrato seu aos 18 anos, fosse um homem e não uma mulher, diria que alguma aventura sua havia produzido aquele fruto perdido e agora encontrado. Esplêndida esta vantagem para as mulheres, o produto do útero é inalienável. Detestava a moça, uma ironia cruel da natureza trazer para perto de si uma lembrança tão incômoda de tudo o que ela jamais voltaria a ser.

O que ela estava fazendo naquela idade? Aquela altura da noite já estaria de pijamas para dormir obediente no horário regulado pela família. E a menina? Devia estar no mesmo caminho que o seu, dormindo sobre os livros de uma biblioteca.
Se aproximou para despertar a sonolenta, a silhueta valquírica trazia-lhe saudades de todos os sonhos que havia alimentado na época em que ainda podia tê-los. De repente uma imensa tristeza tomou conta de seus sentidos, uma vontade de ensinar a menina a não ser igual a ela, rogar que ela não seguisse os mesmos caminhos, se importasse mais consigo mesma, ficasse longe daquela entorpecente perigoso que era a aceitação muda do que nos impõem os ritos sociais.

Parou no meio do movimento. Estava ficando velha e piegas. Tão piegas que ainda entendia o significado desta palavra velha e piegas: PIEGAS. Mas acima de tudo, velha. Não acordaria a menina, já era o bastante olhar para ela. Seria insuportável saber que a moça possuía alguma semelhança a mais. Desviou os olhos, caminhou em frente.

As ruínas que o tempo lhe impôs instalaram-se lentamente, todos os dias mirou-se no espelho e sequer notou que estava envelhecendo, em sua cabeça não mudava nada. Só admitiu que estivesse velha e decadente quando ficou impossível ignorar o fato. Quando chegaram para lhe dizer que os absurdos que estavam acontecendo eram muito naturais naquela idade. Parafraseando um de seus escritores latino americanos preferido, ela respondeu ao médico “Essa minha idade que não é nada natural então.”

Arrastou sua pieguice e incômodos naturais para longe, onde não atrapalhassem as vistas do público.

(Imagem: A velha senhora, desenho de Tenini)

domingo, 19 de abril de 2009

Sonho ígneo


Euforia. Fogo. Dor. Gritos e gritos, dor, dor. Fogo até o centro da dor.

Alguns de nós enveredam por trilhas que levam a uma vida puramente interiorizada, um filme velho projetado na parede velha, sonhos desaguando em sonhos, ideias atropelando ideias. Incorpórea, nossa mente é o centro de toda a nossa existência. Nosso corpo é um elo entre o lado de lá e este lado, os dois – corpo e mente – são tidos como inseparáveis, captação e processamento, comando e operação, sensação e reflexão. Apesar da interdependência entre estas duas esferas parecer indispensável, em ocasiões especiais pode ocorrer uma bipartição. Somente as funções mais primárias do corpo seguirem funcionando e a mente continuar trabalhando sem notícias da parte física. A dúvida é, para onde vai a consciência quando este desligamento ocorre? O que sabemos é fruto das nossas interações perceptivas ou do produto que a mente nos apresenta como representação dos dados sensoriais? É possível levar uma vida excluindo-se o corpo? Caso fosse possível, esta existência seria uma prisão ou uma libertação?

As chamas arderam, fumegaram a carne, aplainaram os montes, terraplanaram os vales, inundaram as fossas, soterraram as fozes, destroncaram as partes. As partes se espalharam e jamais se reajustaram.


Mãos (piedosas?) transladaram o corpo, imitação torpe do original, para onde os olhos não precisassem se desviar da visão grotesca e os cuidados médicos simulassem a vontade da sociedade de manter vivo um ser que ela não desejava mais movendo-se em seu seio.

Até a misericórdia humana é mesquinha.
Acordei... não, corrijo, eu não acordei. Continuei dormindo. Dormir não classificaria o estado em que fiquei, uma parte do sono é repouso e relaxamento, parcela muito pequena é destinada aos sonhos. O meu corpo desejava morrer, a estúpida mente teimava em agonizar. Dividiram-se para preservarem seus orgulhos, só haveria reconciliação mediante um acordo cheio de cláusulas tácitas e irrevogáveis. Criou-se aqui uma lacuna enorme nas minhas já comprometidas memórias, pois do corpo eu só tive notícias depois, por onde ele andou foram os prontuários médicos e os recibos de pagamento que me contaram.

Esqueça esta idéia que passou por tua cabeça. A mente não fugiu do corpo para negá-lo, foi o corpo dilacerado que precisou expulsar a mente cheia de minúcias para curar-se em paz. Neste ponto o corpo é superior à mente, pois ele enxerga as próprias limitações e as respeita, reserva os extremos de esforço para os momentos críticos. A mente quando encontra os seus limites se parte, entra em ebulição e evade-se, até que encontra uma barreira que a faça condensar, jamais volta à forma anterior. Creio que isto tenha acontecido comigo, não tenho certeza, não sei bem se me recordo exatamente de todos os acontecimentos da minha vida, sinceramente, não sei explicar o que se passou no tempo em que dormi. Eu sei o que veio depois, lembro das minhas ações, posso relatá-las, mas lembrar não é explicar as razões. Então, quando chegar a hora eu poderei contar os fatos, mas você terá que se contentar com as explicações que eu inseri depois, ou melhor, que eu insiro agora no relato. Isto porque na época eu apenas agia, sem preocupar-me com justificações ou motivações, muito menos com coerência ou lógica, agia por impulso, por necessidade. Parar e cogitar sobre o que fazer no momento corrido nunca foi o meu forte, todas as minhas divagações foram sempre posteriores. É aí que você é obrigado a contentar-se com o que eu arrazoei sobre as minhas ações passadas, assumir o risco de que eu lhe conto com os olhos e as justificações de hoje coisas que fiz há muito tempo atrás. Vou me desculpar, proteger, e torcer a história em meu favor o máximo que puder, conforme a minha conveniência, pois até nos momentos em que eu estiver apresentando meus erros e fraquezas, pode ter certeza, algum mecanismo íntimo me faz ter orgulho deles, admirar cada uma das minhas palavras como se fossem ditas pelas bocas dos anjos.

Não se preocupe com isto agora, em acreditar ou duvidar da minha isenção, como eu te disse, eu própria não tenho certeza destes detalhes hoje, a preocupação pode ficar para depois, afinal, ainda estamos no ponto em que eu não havia acordado, a época em que o mundo foi só de ruídos abafados e vozes recortadas, em que noite e dia foram um só e as lembranças se confundiram com os sonhos, misturadas as coisas que foram com as que poderiam ter sido, ou seja, uma época exatamente igual a todas as outras da minha vida com o diferencial que no lugar em que eu estava não haviam testemunhas para me contradizer, havia somente uma imagem de mim e as imagens que eu fazia das coisas que não eram eu.


(Imagem: Grainger Boogerman, Inferno)

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Um brinde ao tédio!



Ao tédio, um brinde!

Um amigo muito querido dedica seu blog ao inútil do dia a dia. A inutilidade cotidiana da repetição do obrigatório e do pouco notório. O tédio frente a um mundo que gira em torno do mesmo ralo, entra por ele e sai mais lá na frente renovado em seu lodo indelével. Então, nós dois, que nos acometemos mui frequentemente pelo tédio, sempre nos debruçamos sobre nosso tédio e discutimos sobre as saídas para tal posicionamento diante do mundo. Eu uma entediada apocalíptica resolvo a equação besta deste mundo na imagem de um grande final trágico, esmurro o tédio com minha visão quase utópica de que a destruição total pode nos levar a algum lugar melhor, no mínimo mais interessante. Por misericórdia, seja este pós-mundo menos imbecil do que o atual!

Em minhas prolíferas antevisões destas agitações cósmicas - pura vontade de ver a mudança ocorrer, o ralo exalar perfume de flores depois de destruído, a humanidade renascer aprimorada depois do cataclisma - ou seja, nestas tolices românticas bem típicas dos amantes de uma destruição renovadora, aborda-me o meu entediado parceiro dos ócios criativos, e faz-me pensar que deveria o mundo inteiro ser dedicado aos momentos de ócio, pois é neles que fugimos da reme-reme teleguiado do dia-a-dia e nos lançamos aos mares imprevistos da invenção e do delírio.

O ócio e o tédio só acometem aqueles capazes de erguer a cabeça do esgoto dos dias, olhar para o céu encoberto pela poluição e dizer: "Cara, esta vida é um saco!" Não porque está sem dinheiro, porque está sozinho, porque não tem nada para fazer, porque tem trabalho demais para fazer, porque o par romântico está mais para parceiro de pôker, porque o imposto de renda consome tudo.... dizemos porque é verdade! Verdade dolorosa, depois de dita não muda em nada a situação mas prova que não perdemos tempo a dar cores bonitas ao cinza preto e branco do igual ao de sempre.
Inquietem-se com a igualdade dos dias! Enfureçam-se com o ligeiro passar das horas! Quebrem as correntes dos pensamentos prontos!Entediem-se e movimentem-se! Achando a vida uma chatice é que nos reviramos para viver dias menos chatos!

Um brinde aos companheiros do tédio.


(imagem: Paranoic Visage, Salvador Dalí)

quarta-feira, 15 de abril de 2009

Prisioneira do medo



E havia o medo. À noite, sozinha com o menino, acordava amedrontada com os ruídos das árvores e as luzes dos carros passando na avenida próxima, sentia que não estava sozinha, uma presença gelada, uma presença que a observava e a cobiçava, sim, sentia que alguma coisa dentro do escuro a desejava. Um estremecimento entrava pela planta dos seus pés e rastejava joelho acima, arranhando pelo roçar de uma coxa com a outra, repuxando o baixo-ventre, apertando os seus pulmões. Sem ar (seria medo de respirar?), os músculos começavam a doer pelo esforço de manter-se imóvel, sentia cada fibra da roupa sobre seu corpo, a garganta secava, os olhos ardiam sob as pálpebras, os lábios se apertavam, a língua parecia enorme para caber dentre os dentes, os dentes pareciam soltos e os mamilos formigavam doloridamente. Passavam-se horas nesta imobilidade exasperante, sem que criasse coragem para mover qualquer parte do corpo, sem que levantasse para certificar se a casa estava vazia, sem que averiguasse o sono do filho que dormia no quarto ao lado.
Nada disso possível. Nas noites em que aquela presença terrificante não invadia seu corpo, o filho chorava toda a noite, não havendo chás ou consolos que o calassem. Dormia as noites em que passava em claro no tapete ao pé da cama do filho, tremendo de frio, marcando a pele morena com marcas do chão duro, resfriando-se e ficando febril. E a continuidade daquela angústia era uma certeza desesperadora, nenhuma saída para fora da própria vida. Apelava para todos os paliativos morais e farmacêuticos da modernidade, nenhum resolvia em nada a sua dor. Mas aquele passo a levaria além, muito além dos limites da prisão imaginária que nos retém passivos. Seria um passo na direção da liberdade. O resto dos dias seria de liberdade e solidão, nada mais de sonhos e pesadelos, somente o vazio da existência sem reflexão. Caminhou então para o precipício de seus dias e mergulhou na calma da incerteza plena.
(imagem: Angustia, Salvador Dali)