segunda-feira, 15 de novembro de 2010

O punhal no escuro


K. entrou no quarto com a intenção de tratar aquele homem de igual para igual, iria rebaixar-se a oportunizar que o homenzinho infeliz lhe fosse útil. Sabia que Mirael prestava serviços àquele parque durante um longo tempo, sabia também que tratava-se de um sujeito perigoso, devido a sua reclusão. Homens solitários são capazes de qualquer fraqueza. K. era capaz de conviver entre as pessoas, cativá-las e rir de suas trivialidades. Somente o tempo que suportava manter esta farsa era curto, vencido o prazo de tolerância, procurava locais mais silenciosos. Contra sua vontade, voltava a sentir falta de convívio e a mesma humanidade que impulsionava a reclusão impulsionava também que procurasse alguma convivência. As pessoas lhe pareciam geralmente insuportáveis, intrometidas em opinar a vida alheia, fingir condescendências, continuavam mesmo assim a serem os únicos animais dotados de inteligência e fala sobre a Terra. Suportar era imprescindível.
Em absoluto, sentia-se muito superior a Mirael. Beirava simpatizar com o mecânico, devido ao contraste inegável, qualquer pessoa teria a sensação de ser um abençoado próximo a uma criatura naquela situação. Prostrar-se em um quarto apertado e mal iluminado, porcamente protegido da chuva e do frio, orgulhar-se de um dinheiro minguado, ajuntado em avareza pelo fio de anos e anos. Isto passava pela mente de K., pés firmes no meio do quarto, aguardando que Mirael deixasse de sentir pena de si mesmo e se erguesse.
Tarde reparou na nudez do desfigurado, mais um motivo somado ao choro compulsivo e a postura anormal para causar asco. Um animal cujo ninho houvesse sido violado pelas raposas, esta foi a imagem depreendida por K. daquela reação descontrolada.

- Não estou aqui para invadir tuas privacidades, vim apenas lembrar-te das tuas obrigações profissionais.

A  frase saiu indiferente. Sem intenção de justificar ou amenizar a inconveniência, uma informação oportuna, só. Desejava sair dali e pagar do próprio bolso a um trabalhador qualquer para que auxiliasse na remoção da peça a ser restaurada do carrossel. Gastaria em dobro, teria prejuízos, em compensação, estaria livre do indigno companheiro de trabalho. Mais alguns meses, entregaria a empreita completa e tiraria umas longas férias nos campos, longe daquelas ruas que a cada dia se enchiam de mais e mais estrangeiros gananciosos.

Vislumbrou o rosto de cicatrizes profundas contorcer-se para um sorriso caricatural. Engolindo choro e vergonha, o mecânico buscara forças para provar o quanto era covarde e embusteiro. Sentia o desespero e a ausência de amor-próprio de Mirael, provando com aquela lâmina que podia ser mais abjeto do que muitos criminosos, com o descaro de um sorriso cínico na face negava à outra parte envolvida na disputa o direito da igualdade de condições.

Como se já não bastasse a nudez ridícula, exposta como um câncer cujo doente imbecil faz questão de mostrar a todos que o visitam, chamando sobre si exclamações de pena e conforto, exclamações arrancadas da falta de decência do canceroso, carente de saúde e orgulho próprio.

Subtraindo o punhal de seu adversário, o embate seria simples, os reflexos  não falhariam frente a inimigo tão passional. Porém, punhais não se soltam das mãos de seus donos pela força do pensamento. Recuaria e aguardaria uma vantagem. O quarto minúsculo não fornecia grandes opções para recuos, as costas não tardaram a encontrar a parede. Por mais forte que Mirael viesse a ser, duvidada que fosse, mas se porventura fosse, a parede serviria como ponto de equilíbrio para um revide mais ousado, em que fosse necessário abrir mão de um ponto de apoio.

Durante o tempo que Mirael fixou os olhos, estonteado talvez por um ser humano que não se assustasse ou gargalhasse de sua cara de palhaço em circo de aberrações, tentava entender como em tão pouco tempo o desprezo e indiferença que sentia pelo mecânico haviam tomado tão grandes proporções. Sentia como se a proximidade de Mirael e a atmosfera daquele quarto amplificassem todos os seus sentidos. Apalpava o objeto arredondado dentro do bolso de seu casaco quando um vulto passou rapidamente pela janela, fazendo com que K. olhasse. Amaldiçoado vulto. Foi a chance para Mirael atar-lhe o pescoço e avançar o punhal. Deteve a mão assassina a tempo. Não fosse o estrangulamento, que prendia parte dos movimentos de seu tronco além de causar dor e falta de ar, teria desequilibrado o mecânico. Mas os fracos são covardes até mesmo em suas valentias, o objetivo de Mirael não era provar sua superioridade, parecia ser a simples vontade de ferir alguém.
O pior ultraje era reparar no rosto do inimigo o prazer que sua dor excitava. Sentiu escorrer o sangue da incisão por sua coxa e imaginou quão deprimente seria experimentar uma morte sem sentido como aquela.

“Jamais!”, pensou em seu íntimo. A morte seria bem vinda no dia que chegasse acompanhada por reconhecimento e honra, como a de seu tio Haus, que morrera abraçado a uma bomba colada em seu peito, levando junto consigo outras trinta almas em um metrô. Trinta havia sido pouco, mas Haus nunca foi grande coisa.

Por cima do ombro de Mirael, assistia ao tremular dos vidros das janelas pelo vento, lutava para subjugar o braço do mecânico, mas a falta de ar começava a atrofiar seus músculos. Pensou suicidamente em deixar que Mirael enterrasse o punhal até o fim e se afastasse para contemplar sua obra, momento em que aproveitaria para desenterrar o punhal e arrancar os intestinos do infiel. Iriam os dois para o inferno e lá descobririam qual seria o mais forte. Todavia, não somos nós que escolhemos a morte. É ela, senhora de tudo, que nos escolhe.

Achava anormal a trepidação dos vidros, hipnotizando-se com o barulho que poderia ser o último que ouviria, quando o estouro das janelas sobressaltou aos dois gladiadores. Mirael estava absorto demais em obter algum retorno emocional com sua crueldade, por isso assustou-se deveras e tirou-lhe a  mão do pescoço para reparar no que ocorria às suas costas. Vinha contando com alguma distração do tolo, segundos antes do estilhaçar dos vidros ele imprudentemente folgava a mão para espremer alguma palavra da vítima agonizante. Ao voltar do rosto de Mirael, K. arremessou a cabeça o mais forte que pode, usando toda a liberdade de movimentos obtida com o pescoço e os ombros livres do estrangulamento. Ouviu o estalido de osso quebrado, era o nariz de Mirael que rompia. Aturdido pela dor, Mirael deixou cair o punhal e levou as mãos aos olhos. Ainda respirando com dificuldade, sacou do bolso o objeto que havia acariciado pouco antes da sua imobilização, um soco inglês que havia pertencido ao avô, com ele aplicou um gancho de direita no estômago de um Mirael de peito coberto pelo sangue do nariz, segundo depois tombado ao chão desacordado.

Guardou o punhal no bolso interno do casaco, junto com o soco inglês, levando em seguida a mão ao umbigo ensangüentado.

- Você é no final das contas, um fraco, ou já me teria assassinado. A mim não interessa dar a clemência da morte a um pobre infeliz. Teu castigo é viver sabendo que eu sou superior a você.

Saiu em seguida e retornou pouco tempo depois com uma corda e um saco grosso de aniagem. Atou pés e mãos de Mirael, vestindo-o antes com um macacão azul tirado da cômoda velha, jogou o saco no ombro direito e o levou até a carroça parada a uns cinqüenta metros de distância. Mirael não ultrapassava tanto o peso dos fardos que carregava durante as colheitas, pesava pouco como valia.

Uma lição aprendida do pai, era achar valor nas pessoas mesmo quando estivesse muito escondido. Por maior que fosse o seu desprezo por Mirael, foi capaz de enxergar alguma utilidade aproveitável naquela carcaça fétida. Havia sido capaz de obter vantagem em uma luta que começou desvantajosa para ele, em lugar de se portar como uma puta chorona e exigir a saída de K., propôs-se a executar uma expulsão, quiçá um assassinato.

Interessante este Mirael. Arrancou seu sangue com prazer. Era homem o bastante para direcionar este talento para outras vítimas? Aquela loucura em seus olhos poderia ser manipulada? 
Positivas ou negativas, obteria aquelas respostas. Seguia pensando e guiando a carroça pela estrada enlameada, a chuva começava a cair novamente, precisava chegar logo em casa para estancar e medicar a ferida, fazer as perguntas certas para Mirael.

“ Só é possível descobrir do que é capaz um homem perguntando a ele, e deixando que ele mostre o que sabe fazer.”

Assim dizia seu pai.

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