terça-feira, 16 de novembro de 2010

Além da morte dos amados



 
 


“Muitas sombras de gente já falecida ocupam-se somente em lamber as ondas do rio dos mortos, porque ele se origina de nós e conserva o gosto salgado de nossos mares. Então o rio, tomado de nojo, cria uma corrente contrária e empurra os mortos novamente à vida. Daí eles ficam felizes, entoam canções de agradecimento e acariciam o rio rebelde.”
Franz Kafka, Aforismos
 
- O que levamos desta vida para a próxima? Ouro? Roupas? Títulos do Tesouro? Acaso levamos as flores que recebemos quando aniversariamos? Vão conosco as cartas de amor que recebemos dos admiradores? Os brinquedos que nossos pais compravam? Ou será que vão as mágoas, as lágrimas escorridas, as derrotas? Vão as rugas? Vão os cabelos brancos? Vão as varizes?

A mãe de Fani dizia, enquanto trançava os cabelos da filha, acocorada entre as coxas da mãe: “Não se leva nada desta vida, Ní. Chegamos do outro lado leves e livres. A carga está nas costas dos vivos, os mortos descansam. Morrer é tão fácil, viver tão difícil.”

Fani concordava, viver é muito difícil. Faz-se tanta força para construir e ajuntar. Força nas ancas para se parirem os filhos; força nas vistas para ver tudo que há para ser visto. Muita força para não dizer as coisas certas nos momentos errados, as coisas erradas nos momentos certos, ou qualquer coisa em qualquer momento. Por força da conveniência, não seria mais fácil calar?

- Calar, consentir. Passar pela vida sem nunca questionar qualquer coisa, “Está tudo certo, tudo muito bom”. As crianças estão nascendo com doze dedos e quatro mamilos? “Hum, hum... bom, bom”. Nossas filhas não sabem de quem estão grávidas? “Uma criança segurando a outra, que lindo!”.  Se teu filho esmaga a cabeça de alguém contra o muro... “Tão ativo o menino, como crescem!”.

- E se nos dizem que o certo é errado e o errado é o certo, quem é você para questionar a sociedade dos contra-valores? Uma sociedade tão organizada e unida, com horários estabelecidos, com livros de Leis, com arautos, selos postais, limites máximos e mínimos, controle de velocidade e natalidade. Estão para implantar um sistema que te diz a hora certa de morrer: “Setor Nordeste IV, favor encaminhar-se às cabines de controle populacional, este setor não é mais adequado para o funcionamento do Sistema”.

As vozes falavam com Fani como se tivessem pés, e estivessem caminhando em círculos ao seu redor. Às vezes, brotavam de dentro da sua cabeça de tão próximas, outras vezes, soavam de longe, tons baixos e longos. Fani não sentia mais seu corpo, e estava feliz por isso. O corpo até ali vinha sendo um enorme estorvo. Abriu os olhos, de todas as direções e para todas as direções haviam pistas asfaltadas, bem sinalizadas e iluminadas. Dava a impressão de que se poderia ir a qualquer parte dali, e as estradas se perdiam no horizonte. Fani parou bem no meio de um daqueles cruzamentos e procurou sua sombra, que não estava lá, porque a luz que iluminava aquele trecho do mundo parecia vir de lugar nenhum ou de todos os lugares ao mesmo tempo.

Imagem: Dante e Virgílio no Inferno (1822), Delacroix, Museu do Louvre, Paris.


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