sexta-feira, 19 de novembro de 2010

A mola que move o mundo



Um dia, eu acordei, peguei um ônibus, entrei em um laboratório, recebi um envelope com o resultado de um exame e o guardei na bolsa. Na rua, não contive a curiosidade, entre uma esquina e outra rasguei o lacre e espiei o conteúdo.

 A maioria dos acontecimentos em nossa vida desaba sobre nossas cabeças, sem nos deixar saída. Destes desabamentos somos vítimas ou premiados. Ser vítima é mais simples, não exige nada por retribuição. A dádiva é mais complicada, não é uma conquista, é um presente que recebemos por razões além do nosso merecimento e esforço, exige responsabilidade.

Alice foi a única pessoa que consegui amar na vida. Irrefletidamente concebida, tive por ela um apego de criador sobre criatura, apaixonei-me pela idéia de ser capaz de amar alguém. Cheguei a amar mais a sensação do que a menina. Amei especialmente ser objeto daquela paixão e admiração infantil que os filhos nutrem pelas mães. Todas as minhas conexões com outras pessoas sempre foram recheadas de ressentimento, sensação de inferioridade, estranheza. Amá-la foi mais fácil, estava amando um pedaço de mim que encantava a todos.

Rompido o lacre do envelope operou-se a segunda concepção daquele feto. Entregue o destino daquele ser em minhas mãos, poderia ter recuado amedrontada e repudiado o fruto. Não foi o que houve... Eu sorri. Não aquele sorriso social, que se abre a qualquer pessoa em nome da cortesia. Um sorriso autêntico de contentamento. Todos os meus sorrisos até aquele dia haviam sido fingidos, forjados, forçados. Dali em diante foram todos para Alice. Até aqui e hoje, do outro lado do oceano, é para ela que  sorrio sempre que julgo ser necessário.

Aceita a dádiva, cedi da minha carne e sangue  para aquele feto. A mim, ele ofereceu  vontade de me tornar algo melhor do que havia sido até ali. Uma dádiva maravilhosa me havia sido entregue, cabia-me ser merecedora. Para me tornar este algo mais merecedor, separei-me de Alice. Deixá-la para trás  trouxe sofrimento para nós duas, porém, eu estava certa de que o sofrimento fazia parte do caminho das minhas realizações. Gerar Alice, alimentá-la, educá-la, tudo isso seria apenas cumprir com minhas obrigações de recebedora de uma dádiva. Seriam simples privilégios. Minha batalha pessoal era dar  à Alice os frutos das minhas próprias conquistas, dos meus próprios esforços, resultados de minhas escolhas. Eu desejava mostrar algo obtido com minhas próprias forças.  Por isso, parti.

Tudo o que nos é cedido beneficamente, por força, nos é arrancado e pisado em algum momento futuro. Veio o dia do telefonema, quando percebi que novamente os acontecimentos estavam desabando sobre minha cabeça, desta vez, contudo, não eram dádivas. Alice estava morrendo. Era o que meu mano queria me dizer ao telefone. Mas não disse. Falou de tratamentos, remédios, viagens, dos esforços da minha mãe, dos sacrifícios do meu padrasto, compatibilidade, agulhas, biópsias, plaquetas, glóbulos brancos, infecções, células, leucócitos... Até que me impacientei, mandei ao diabo o que os médicos achavam e perguntei o principal: “O que eu posso fazer?”

Dinheiro, a mola que impulsiona o mundo. Vileza colocar vidas na balança junto com dinheiro. Ainda mais quando é uma vida querida. Sem muitas opções de ignorar a rotação do mundo, caminhei na direção de fazer o que viera ao mundo para fazer.


[Imagem: Pablo Picasso, Maternidade.]

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