terça-feira, 23 de novembro de 2010

Despertar do duvidar




Aquelas almofadas serviram divinamente ao meu sono, despertei descansada, sem dor nenhuma pelo corpo. Até me apalpei um pouco para ter certeza de que o corpo não estava insensível ao toque e à dor.

- Aparentemente tudo no lugar. – Ponderei, dando um soco leve no joelho e rindo da resposta reflexa da perna.

- Exceto por esta coceira besta.

O vestido retirado de um roupeiro no andar de cima podia ser vistoso, mas pinicava feito estopa. Preferi culpar a roupa a admitir que aquelas almofadas confortabilíssimas estivessem empesteadas por pulgas. Conformei-me em coçar os braços e o pescoço até avermelhá-los, e só então olhei ao redor e tentei me lembrar de onde eu estava. Acontecia às vezes, acordar e não ter certeza do paradeiro. Por isso, preferia acordar sempre no mesmo lugar, olhar para as mesmas paredes e reconhecer a segurança do ninho. Sentada com as pernas cruzadas sobre uma almofada menor, organizei as lembranças. O fogo na lanchonete, a diligência em busca da preciosidade afro e ingrata, a folia no meio dos monstros e zumbis, o cárcere desinteressante naquela casa cheia de cadáveres ... Demorou uns instantes para que esta viagem digna de trem dos horrores me figurasse como realidade. 

Eu tinha estado por tanto tempo aguardando o momento em que pudesse confiar nos meus próprios sentidos. Seria capaz disto? Sempre busquei crer nas coisas que me foram apresentadas como lógicas e plausíveis, assim como toda gente tenta fazer, limitando minhas experimentações aos deveres escolares de ciências. Contudo, a cada dia eu sentia maior dificuldade em encarar a maioria dos acontecimentos como aceitáveis. O problema é que nunca fui boa em observar as totalidades e depreender as partes. Sentar e tecer conjeturas sobre algum ponto nebuloso das tramas me enfadava.  Passei a vida a me guiar somente por minhas impressões imediatistas, sem planejamento, sem rotas preestabelecidas. Todas as minhas decisões eram passionais, nascidas do instante, improvisadas, intuitivas. Caminhando para a ruína ou para a glória, caminhava sempre tranqüila, em paz com meus impulsos. E se deixei de fazer alguma coisa que tive vontade, foi por não ter reconhecido o desejo escondido. Sem frustração, é sempre possível satisfazer um desejo com outro objeto, desejo é impulso, é energia, não se desperdiça, se direciona. Enquanto eu for capaz de deixar a energia correr livre pelo meu corpo e mente, estarei satisfeita, sem necessitar do uso de quaisquer medidas cartesianas para tal. 

Apesar dos sustos, eu estava satisfeita. Depois de muito tempo duvidando das coisas que via, aquela noite havia definitivamente inaugurado uma era em que a dúvida não existiria mais. Perigosa, devido a fecundidade da minha imaginação, que se ocupava sempre em preencher qualquer vazio com muita cor e rabisco, menos conflituosa. Passei a aceitar que as coisas eram, independentes do que se julgava que fossem.


Imagem: O Despertar do Pintor, Carlos Carreiro

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