quarta-feira, 2 de junho de 2010

Jantar



Aceitou sem receios acompanhá-lo de carro até o local da alimentação, surpreendendo-se apenas porque não estava indo  para um restaurante, mas para um apartamento. Fosse ela uma destas almas mesquinhas que julgam mal aos outros,  poderia tecer dezenas de pensamentos injuriosos, “o sovina não me paga um jantar”, “o safado planeja jantar-me”, “o  estróina deseja jantar-me sem me dar de jantar”. Não pensou, todavia, nada disso. Pensou que uma pessoa que alimenta  a outra cumpre seu papel no universo. O professor era duas vezes provedor, provia alimento à alma e ao corpo. 

Receou quando foi indagada sobre o nome. O nome era uma parte de si que julgava ser muito íntima para ser dita ao léu. A partir do nome é possível conhecer todo o futuro e passado de uma pessoa, descobrir-lhe medos e sonhos. Deus havia proibido o povo escolhido de chamá-lo pelo verdadeiro nome, e o segundo mandamento nas Tábuas da Lei diz: “Não usar O santo nome em vão”. Se entregasse o verdadeiro nome, colocaria o destino inteiramente nas mãos do homenzinho. 

Disse apenas uma parte do nome:

- Alice. - Com esta metade revelada protegia a metade oculta, protegia o verdadeiro eu.

Como demorava o homenzinho para aprontar um prato tão simples! Em sua casa, Alice usaria o tempo que ele estava gastando indo pilar o trigo no pilão, extraindo a farinha, preparando a massa, colhendo e esmagando os tomates para o molho, cozinharia a massa, buscaria os temperos na horta e picaria tudo em miúdo até que a massa entrasse no ponto, e já estaria servida à mesa.
- Aqui está, senhorita! Espaguete à bolonhesa, à minha moda.

Alice vomitou aos pés da mesa, frente à visão das bolotas de carne.

- Perdoe a minha descortesia, mas sou vegetariana!

Evitara dizer antes, quando fora indagada sobre coxas e barrigas, para não magoar o anfitrião. Mas não suportou o engulho quando sentiu o cheiro da carne. Criava animais para retirar os insumos e vender as crias, mas não tocava nas carnes.

Ainda tentou separar de lado os pedaços repugnantes de células animais, mas o sabor devia estar impregnado na massa, resumiu-se então a remexer com a ponta do garfo, fingindo interesse no prato.

Comer era algo tão pouco especial para toda aquela gente habitante do pequeno planeta sem idéias, comeriam qualquer porcaria, comeriam até a si mesmos, na falta de petiscos com alto teor de gordura e açúcares. A comida dos outros habitantes daquele pequeno mundo parecia-lhe morta, sem cor, sem movimento. Tinha gosto de coisa velha e embolorada, escondida da luz, desfacelada pelo contato com o ar, conservada em química para não apodrecer fora dos intestinos.

Alimentar-se naquele planeta era perigosíssimo. Precisava voltar para casa.

(Adaptação de texto escrito para um roleplay, o estranhamento frente ao hábito do "outro", como eu já coloquei, o problema são os outros, não nós.)

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