quarta-feira, 2 de junho de 2010

Embriaguez

Deixou o estabelecimento e seguiu reta até a primeira esquina, local onde se deu conta da sua embriaguez. Cinco litros de vinho tiram uma pessoa dos eixos! A sua cabeça havia esquecido o álcool agindo sobre os reflexos, mas o seu corpo não foi capaz de ignorá-lo. Zanzou, cambaleou e só não caiu porque achou a escora do poste de iluminação. Ingratamente brindou o pé do poste com esguichos de vômito e esqueceu-se de lembrar o quão disciplinado era o seu suco estomacal, que poderia muito bem ter se exteriorizado após os rodopios no restaurante, mas não o fez. Prova incontestável da seletividade de sua bílis, escolhia sempre os locais mais limpinhos para se espalhar e adivinhava as opções éticas e políticas de sua dona, recusando misturar-se com a gentinha filadora de bóia do restaurante de esnobes. Sem dúvida o seu estômago era mais elitista do que ela própria.
 

Ainda apoiada ao poste e vendo o mundo girar lembrou-se do milagroso “torradinho” que levava sempre consigo no embornal. Não era nenhum alucinógeno, não se preocupem. Era só uma receita de família que levava imburana, gergelim, ginsen, barbatimão e erva-doce, tudo muito bem tostado em um braseiro para retirar o óleo e pilado em seguida para obter o pó, que ia amarrado em forma de patuá. Uma cafungada só no odorífico balsâmico daqueles extratos naturais e a zonzeira passou.
 

Nesse momento de lucidez que procedeu a embriaguez, luminosa como um raio cruzando o céu noturno e terrível como a descoberta de um novo mundo, uma monstruosa realidade apresentou-se aos seus sentidos. Os rompantes de euforia que antecederam a sua saída do restaurante desembocavam agora em rios de desespero. Um segundo de realidade é capaz de esmagar o indivíduo, e naquele segundo específico e especial, fatidicamente, Alice foi esmagada pela contemplação de nada além da mais verídica e factual verdade: ela estava completamente só. 

Restavam apenas dez quilômetros de caminhada até sua casa, para encontrar o último de seus parentes recém-morto enterrado em uma cova de terra ainda fofa e uma máquina de escrever que datilografava sozinha frases inúteis.

Para não cair no patético de arrancar os cabelos, tomar veneno ou virar freira seu cérebro deu ordem para ir pensar em coisas mais amenas. 



(Da mesma personagem de "Estudos Cerebrais" , "Jantar" e "Fuja")

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