sábado, 5 de junho de 2010

Franco

“Em terra de cegos, quem tem um olho é rei. Mas no território dos miseráveis reina o maior miserável de todos.”

- Todo mundo o chamava de Judeu, resquícios de um anti-semitismo arraigado, mas ele não era judeu. Era católico de nascimento e ateu por opção. Não cabia Deus em suas filosofias de mundo, muito menos óbolos, dízimos ou ofertórios. O único culto que aprendeu a presidir foi o culto à sua própria pessoa: os filhos pródigos de Vancouver alquebrados pelas orgias acabavam por fazer peregrinação ao seu santuário, depositavam a seus pés os pequenos mimos, em troca recebiam as dádivas monetárias necessárias para financiar mais uma noite de farra, para pagar a algum agiota e preservar os ossos dos joelhos, havia aqueles que usavam as dádivas para alimentar mais uma noite de vício.

O seu templo era um grande balcão na zona mais ordinária da cidade, um pequeno escritório no hall de entrada para a secretária, no primeiro andar, passando por uma estreita escada em espiral estava o seu altar de atendimento (8 horas por dia, de segunda a sábado) e os terceiro e quarto andares serviam de depósito. Tudo seu, comprado com dinheiro suado e contado.

Começou com uma lojinha pequena, um balcão e duas prateleiras, guardava o dinheiro em uma gaveta, consertava relógios. Era relojoeiro por profissão, aprendido o ofício ao pai, e o pai ao avô. O que fez a sua fortuna foi o seu enorme senso de oportunidade e o seu tato para analisar as pessoas, um empreendedor nato. Sua aprofundada análise de mercado lhe mostrou exatamente onde investir: na necessidade alheia. Tal matéria prima jamais havia de faltar, sempre há uma prostituta, ou um viciado, ou um gatuno querendo se livrar de algum objeto de alto valor sentimental e médio valor monetário.

É assim no ramo dos penhores, você precisa de um olho avaliador muito rápido. Primeiro, deduzir quando pode conseguir pelo objeto no mercado, depois analisar o grau de desespero do portador do objeto, terceiro, ser um perfeito blefador.

Nunca oferecer mais do que vinte por cento do valor real e nunca ultrapassar os quarenta por cento. Por último, ser inflexível. Não há espaço para misericórdia nesse ofício.Os clientes variam em figura, a maioria se torna dependente. Iniciam a via-sacra trazendo uma coisa velha e sem uso, algum cacareco de família, outros trazem coisas realmente valiosas mas que não lhes servem de nada. Na fase crítica, trazem televisores, móveis, a pia do banheiro. E há os que oferecem o corpo e os serviços em penhor. Desses Franco não gostava na juventude, a idade o ensinou a apreciar qualquer oferecimento, vinte anos de profissão ensinam algo a um homem.

- Já pode atender o próximo cliente, Franco?
- Mande subir. – Lúcia vinha sendo sua secretária há mais de um ano, boa garota. Em vários sentidos.
O cliente era Gina, uma magricela viciada em anfetaminas, roubava objetos da família para trazê-los a Franco.
- Quanto você me dá? – a moça perguntava fungando e contorcendo os lábios, como se estivesse aguardando um prato de comida.
- Você roubou de novo, linda? – Franco perguntava em tom paternal, como um padre preparando um sermão moral.
- Não.
- Jura?
- Eu juro.
Passou os dedos desinteressadamente pela porcelana do prato. Jogou três notas de vinte sobre a mesa. Estava sendo generoso, Gina era uma cliente promissora. Seria bom para ela agora, e indispensável em um futuro próximo.
- Foi a última, Lúcia?
- Foi sim, Franco.
- Pode fechar tudo, então.

Lúcia foi uma de suas clientes, mãe doente, precisava de dinheiro para os remédios. Na terceira visita ela não tinha mais do que a roupa do corpo para oferecer e ainda precisava curar a velha mãe. Então Franco recusou a roupa e ofereceu uma boa quantia pelo conteúdo do vestidinho xadrez. Lúcia era uma boa garota, resistiu o quanto pôde. Talvez se Franco não fosse quem fosse, tivesse sentido pena das lágrimas injuriadas, ou se Lúcia não tivesse um traseiro tão perfeito, ele não o tivesse desejado em demasia. Como gostava de repetir, toda injúria tem seu preço e seu tempo certo. O amor de Lúcia pela mãe foi maior do que o seu pudor, a boa vontade de Frank também, pagou todo o tratamento da velhinha e empregou Lúcia bem perto de si para apreciar sua beleza sempre que lhe desse vontade. Olhava agora com nostalgia para aquela silhueta perfeita, saudade da época em que ela lhe despertava a cobiça.
- Mais alguma coisa, Franco?
Franco se aproximou o bastante para sentir o cheiro dos cabelos castanhos da secretária.
- Não, docinho. Vá cuidar da tua mãe.
Mais um dia de serviços prestados aos desesperados daquela metrópole.


(Franco é um dos meus personagens preferidos, o primeiro do gênero masculino. Os episódios em que ele aparece devem ser resultado das minhas leituras do Rubem Braga, do Jorge Amado, do Dalton Trevisan e sem dúvida nenhuma do Nelson Rodrigues. Políticamente incorreto e amante das imoralidades é muito divertido escrever para ele. Espero que ele angarie mais simpatias do que antipatias.)

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