domingo, 18 de abril de 2010

FUJA.


O silêncio é impossível. Vivia a dez anos em uma casa no meio de uma plantação, rodeada pelo nada, montanhas e adjacências, somente essa certeza trazia da experiência, o silêncio é impossível.

A mudança para o ermo fazia parte dos grandes planos dos pais de proporcionar uma vida tranqüila para os filhos, viver da terra, ouvir os grilos e os sapos. Uma grande e panorâmica mentira para disfarçar o indisfarçável. Escondiam-se no campo para evitar que um dia a mais na cidade roubasse os últimos lampejos de sanidade da família.

Os circuitos elétricos e aparelhos eletrônicos emitiam ondas que confundiam o pensamento, as lâmpadas e tomadas podiam conter escutas e câmeras de monitoração, os telefones continham radium e causavam tumor cerebral. Os vizinhos dos apartamentos fronteiriços eram agentes da CIA ou da KGB, prontos para invadir a casa e matar as crianças. Toda a comida sempre podia estar envenenada, a água em definitivo já estava. Cada novo dia raiava com uma nova interdição, um objeto inofensivo transfigurado em arma mortal, um velho amigo que pertencia agora às forças inimigas. Cada sussurro disfarçava um universo de possibilidades incríveis e absurdas escondidas no meio da noite, e o silêncio nunca reinava.

Sua mãe era uma mulher mediana, desejava manter a família unida. Em lugar de procurar tratamento para o marido, transformou a todos eles reféns de uma mente perturbada.

Por algum tempo a tranqüilidade de uma vida isolada foi capaz de manter adormecidas as alucinações paternas. Se for verdade que o excesso de informações e ruídos da vida moderna é perturbador, não chega a ser mentira que o recolhimento e solidão de uma fazenda podem fertilizar a mente doentiamente criativa.

As paredes da casa velha escondiam habitantes indesejáveis que choravam e lamentavam durante a madrugada. Era possível ouvir seus passos no forro de madeira e o ranger dos dentes mastigando os ossos de roedores e répteis que dividiam a moradia. Quando a lua era cheia, as lamentações aumentavam ao ponto dele ameaçar incendiar a casa para exterminar os invasores. Talvez fossem fantasmas, talvez gente viva e amaldiçoada a viver e reproduzir-se dentro da escuridão dos vãos das paredes, aguardando o dia em que um chamado os avisasse de que a hora era chegada e os que vivem livres deveriam morrer.

Nunca lhe provaram a veracidade das suspeitas de seu pai, nem se provou o contrário. No meio do silêncio das noites existiam sons inexplicáveis, martelares e rangidos que podiam ser qualquer coisa. O movimento das folhas na plantação sob a ação do vento parecia sempre uma dança secreta, culto prestado pela vegetação ao deus oculto no solo fertilizado.

As deidades escondidas no ventre da terra sentem fome às vezes. Isso se dá porque são elas que alimentam os homens, gastam energia para fazer as plantas crescerem e frutificarem. Elas sugam a energia do sol, bebem a água e frutificam. Todavia, são deidades e carecem de reconhecimento e culto. Depois que a Terra abriu seu ventre e recebeu as oferendas da família (os corpos da mãe e do irmão, falecidos quase na mesma semana de uma febre misteriosa, poupados da intervenção diabólica dos químicos, versão que em momentos mais calmos Alice duvidava) o pai se negou a pisar no chão novamente. Não estava pronto para completar o ciclo biológico da vida e entregar seu corpo à Terra. Mudou-se para o sótão e viveria eternamente.
Alguém precisava alimentá-lo. Não havia mais ninguém para negar os seus delírios. A mentira que não encontrou negativa tornou-se verdade.

No dia anterior foi à cidade comprar condimentos. Viu um homem que tentava se matar pulando da torre de uma igreja, e pessoas que aplaudiam o feito. Viu mulheres que alugavam seus corpos nas esquinas e homens que as admiravam por isso. Viu um grupo de rapazes tentarem matar um único e desarmado jovem porque não gostaram da cor de sua roupa. Viu um homem de longos cabelos ser preso por tentar satisfazer a luxúria de uma mulher solitária. Viu a luz se esconder nas frestas e deixar a escuridão bailar ao redor dos postes como mariposa que carrega no ventre pessoas vivas e medrosas. Viu três anjos alados sorrirem para esconder as lágrimas que não escorriam.

Viu tudo isso e achou que precisava sair mais vezes de casa.

Voltou para casa e encontrou o pai de bruços no quintal da frente. Pressentira a morte e correu para frente da casa, porque não saía do sótão há três anos e não desejava apodrecer lá sem que a filha tomasse conhecimento de sua morte. Ou talvez pretendesse oferecer seu corpo ao milharal, mas morrera no meio do caminho. Alice enterrou o pai entre as covas da mãe e do irmão, sem oração, pois nunca aprendeu nenhuma.

A casa aparentava silêncio, sem o mancar dele no assoalho do sótão. Não havia mais o gemer dos viventes ocultos nas paredes. Mas ouviu o tiquetaquear da máquina de escrever. Subiu as escadas para surpreender o invasor. A velha Remmington enferrujada em cima da escrivaninha escrevia sem ter mãos que a datilografassem as teclas:

FUJA.


Adaptado da estréia de um dos meus personagens de RPG. Retirei a inspiração para este texto de elementos dos contos "A balada do projétil flexível e "Children of the Corn", ambos do Stephen King.

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