domingo, 24 de maio de 2009

Natural


- “Já fui uma flor perfumada, exalei todo o perfume do meu viço, hoje sou apenas a sombra do que fui. Minha beleza foi condensada em quilogramas de tecido adiposo acumuladas em pontos nada estratégicos do meu corpo. A idade levou tudo o que eu mais amava da minha existência, inclusive as pessoas que eu amava. Meus filhos (ingratos!) não fizeram mais do que alargar em quarenta centímetros os meus quadris. Meu marido, trocou-me pela primeira ninfeta que abriu as pernas para ele.”

Adorava ler trechos de seus diários para os seus alunos de literatura, para incentivá-los a criarem seus próprios diários. E para mostrar-lhes que nem tudo que se escreve de cunho emocional pode ser aceito como poético. A vida não pode ser poética, porque não é criação, ela simplesmente acontece em descontrole.

Fechou o caderno de anotações, abaixo os óculos para ver sem barreiras as caras pasmadas dos alunos do primeiro semestre. Eram na maioria garotinhas preguiçosas e rapazes afeminados, que achavam o supra-sumo da literatura os romances eróticos vendidos em bancas de jornais, ou as letras de roqueiros decadentes e suicidas. Cultuavam o lixo cult vendido pela mídia, para sentirem-se “cult”. Olhando para eles, preferia infinitamente os fãs de quadrinhos de terror, de filmes trash e música underground, conseguiam ser sinceros em suas preferências, não o preferiam isto ou aquilo para atender a alguma demanda comercial. Ser o único admirador de um artista decadente é saber exatamente do que gosta.

Soou o sinal para o fim da aula. Levantavam-se os alunos e voltavam para suas vidas. Voltava ela para sua vida também. Que vida? Um apartamento vazio. Arrumava os livros dentro da bolsa. Insistia em levar livros para sugerir que eles lessem e comprasse. Eram volumes inestimáveis, sem novas edições, que possuía desde os seus tempos de universitária. Diferentes dela os livros: a vida toda, deu a eles todos os cuidados para que se conservassem intactos, sem rabiscos, sem mofo, sem traças. Ela se deixara deformar, massacrar, massacrar. Quando chegou aos quarenta tentou recuperar o tempo perdido, usou cremes supostamente milagroso, pomadas, ungüentos, fez ginástica, dieta, mas o tempo não retrocedeu. Estava mais velha que os próprios livros. E sozinha.

Desceu as escadas do módulo de aulas, devagar, cuidadosamente. Falta de ar. Dor aguda na coxa direita. Nunca atendiam aos seus pedidos de só ensinar nas salas do térreo. De propósito, pensava ela, a jogavam para o último andar. “Imbecis. Daqui não me tirarão. Ensinar é a última coisa bela e útil que sou capaz de fazer, não vou me aposentar, quero morrer segurando um volume de Tzvetan Todorov, emborcar sobre o retroprojetor enquanto ele estiver exibindo as imagens das ruínas do Templo de Diana.”

Uma última passada na biblioteca para devolver alguns dvd’s. Petulância da bibliotecária recriminá-la pelo atraso. “Pensa que os seios pontudos e o traseiro durinho a fazem melhor do que eu. Piranha.” Na saída, avistou uma aluna dormindo sobre uma das mesas de leitura, sentada na cadeira, tronco reclinado sobre a mesa. Era quase hora de fechar e a moça num sono de morte. “A inútil da bibliotecária sequer dá-se ao trabalho de proibir que se durma no ambiente de leitura. Piranha preguiçosa.”

Reconhece a aluna de longe. A menina era um retrato seu aos 18 anos, fosse um homem e não uma mulher, diria que alguma aventura sua havia produzido aquele fruto perdido e agora encontrado. Esplêndida esta vantagem para as mulheres, o produto do útero é inalienável. Detestava a moça, uma ironia cruel da natureza trazer para perto de si uma lembrança tão incômoda de tudo o que ela jamais voltaria a ser.

O que ela estava fazendo naquela idade? Aquela altura da noite já estaria de pijamas para dormir obediente no horário regulado pela família. E a menina? Devia estar no mesmo caminho que o seu, dormindo sobre os livros de uma biblioteca.
Se aproximou para despertar a sonolenta, a silhueta valquírica trazia-lhe saudades de todos os sonhos que havia alimentado na época em que ainda podia tê-los. De repente uma imensa tristeza tomou conta de seus sentidos, uma vontade de ensinar a menina a não ser igual a ela, rogar que ela não seguisse os mesmos caminhos, se importasse mais consigo mesma, ficasse longe daquela entorpecente perigoso que era a aceitação muda do que nos impõem os ritos sociais.

Parou no meio do movimento. Estava ficando velha e piegas. Tão piegas que ainda entendia o significado desta palavra velha e piegas: PIEGAS. Mas acima de tudo, velha. Não acordaria a menina, já era o bastante olhar para ela. Seria insuportável saber que a moça possuía alguma semelhança a mais. Desviou os olhos, caminhou em frente.

As ruínas que o tempo lhe impôs instalaram-se lentamente, todos os dias mirou-se no espelho e sequer notou que estava envelhecendo, em sua cabeça não mudava nada. Só admitiu que estivesse velha e decadente quando ficou impossível ignorar o fato. Quando chegaram para lhe dizer que os absurdos que estavam acontecendo eram muito naturais naquela idade. Parafraseando um de seus escritores latino americanos preferido, ela respondeu ao médico “Essa minha idade que não é nada natural então.”

Arrastou sua pieguice e incômodos naturais para longe, onde não atrapalhassem as vistas do público.

(Imagem: A velha senhora, desenho de Tenini)

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