quinta-feira, 2 de maio de 2019

o Olho



Ganhei recentemente um olho a mais
desses que veem além

desde então...

eu vejo utilidade nas coisas 
antes que elas tenham utilidade

sinto o perigo
antes que ele dobre a esquina

sinto o calor das lágrimas
antes que elas escorram

sinto o enrubescer da face
antes do sorriso

ouço o coração que acelera ao meu passar
escuto o vento roçar nos caules verdes
pressinto o olhar que se lança ao vento
saboreio a saliva dos tísicos moribundos
aspiro o ar do pulmão dos afogados
ondeio com o tontear dos ébrios
caminho sobre os passos dos desesperados
sorrio para os botões de flor
aspiro a fumaça dos motores
exalo o desejo que me tens


Todas as coisas
as mais inúteis
estão interligadas.

Faço minha mala no escuro
roupa para uma semana
sem conferir quais peças vão

visto-me como quem vai à guerra

Dobro em quarteirões desconhecidos
encontro amigos desaparecidos

Ando errante pelos becos
descubro o amor

Descarto o uso de lingeries
rejuvenesço dez anos

Olho todas as coisas como se fossem novas
repito palavras como se fossem música
aprendi a ouvir música
e ouvir os pássaros
e a sentar na grama molhada
só para sentir seu cheiro

Abraço amigos da vida toda
aos quais eu somente dizia 
bom dia

Choro copiosamente a morte de desconhecidos
perdoo as almas condenados ao inferno
assumo alguns pecados inconfessos
cometo outros no caminho

Pela primeira vez na vida
Acho que talvez me aceitem no Céu.

Tudo isso foi possível
por causa de um ponto
negro sobre branco
vazio
zero
deus
estático 
dinâmico
modal
fractal
performático


Tudo isso foi possível
por causa do tempo
da migração das almas
de eu já ter nascido
cavaleiro
bruxa
cachorro
já ter conjurado magia de sangue
ter trocado carne por ressurreição
ter sacrificado vidas no altar do poder infernal
ter mandado almas ao Diabo
ter trocado a minha alma por uma desforra
e no final...
ter exaurido toda a energia do universo em um único feixe de raio branco

Tudo isso foi possível
porque eu me aceitei
como sou
como fui
como serei
sem censura



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