Ganhei recentemente um olho a mais
desses que veem além
desde então...
eu vejo utilidade nas coisas
antes que elas tenham utilidade
sinto o perigo
antes que ele dobre a esquina
sinto o calor das lágrimas
antes que elas escorram
sinto o enrubescer da face
antes do sorriso
ouço o coração que acelera ao meu passar
escuto o vento roçar nos caules verdes
pressinto o olhar que se lança ao vento
saboreio a saliva dos tísicos moribundos
aspiro o ar do pulmão dos afogados
ondeio com o tontear dos ébrios
caminho sobre os passos dos desesperados
sorrio para os botões de flor
aspiro a fumaça dos motores
exalo o desejo que me tens
Todas as coisas
as mais inúteis
estão interligadas.
Faço minha mala no escuro
roupa para uma semana
sem conferir quais peças vão
visto-me como quem vai à guerra
Dobro em quarteirões desconhecidos
encontro amigos desaparecidos
Ando errante pelos becos
descubro o amor
Descarto o uso de lingeries
rejuvenesço dez anos
Olho todas as coisas como se fossem novas
repito palavras como se fossem música
aprendi a ouvir música
e ouvir os pássaros
e a sentar na grama molhada
só para sentir seu cheiro
Abraço amigos da vida toda
aos quais eu somente dizia
bom dia
Choro copiosamente a morte de desconhecidos
perdoo as almas condenados ao inferno
assumo alguns pecados inconfessos
cometo outros no caminho
Pela primeira vez na vida
Acho que talvez me aceitem no Céu.
Tudo isso foi possível
por causa de um ponto
negro sobre branco
vazio
zero
deus
estático
dinâmico
modal
fractal
performático
Tudo isso foi possível
por causa do tempo
da migração das almas
de eu já ter nascido
cavaleiro
bruxa
cachorro
já ter conjurado magia de sangue
ter trocado carne por ressurreição
ter sacrificado vidas no altar do poder infernal
ter mandado almas ao Diabo
ter trocado a minha alma por uma desforra
e no final...
ter exaurido toda a energia do universo em um único feixe de raio branco
Tudo isso foi possível
porque eu me aceitei
como sou
como fui
como serei
sem censura
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