Menina
Capítulo 1
Ser Menina
Nascera mulher e por obrigação devia portar-se como uma dama. Ser dama, na verdade, não lhe entrava na cabeça. Primeiro, porque "dama" é uma palavra medieval utilizada até hoje, século XXI, totalmente descontextualizada. Mas o fora de contexto não ia por sua mente infantil, ser dama era o mesmo que ser menina boazinha. Quase ser princesa; gostaria de ser princesa, mas era pobre.
Era pequena a ponto de brincar de balanço, porém lhe proibiam usar roupa curta ou mostrar a barriga. Era proibido ainda brincar no meio dos meninos. Tinha tantos primos, todos da sua idade, todos com brinquedos novos e novidadeiros, sabendo coisas diferentes, mas não podia brincar com eles.
O que era isso de ser menina? Duas dobrinhas entre as pernas, um pintinho pendurado, essas coisas não deviam fazer tanta diferença. Nunca lhe compraram nada rosa, dizia a mãe que desejou seu primeiro filho homem. Devia ter nascido homem, então. Mas não nasceu. Na alma devia ser menino. Mas uma coisa que bulia lá dentro de sua mente lhe dizia que era menina mesmo, porque gostava das coisas de menina e já havia se acostumado em fazer trança e vestir calcinha.
Se desse pra nascer de novo, voltando assim lá antes de ter nascido, quando lhe perguntaram o que queria ser... Sabe? quando você é só uma alma lá no outro mundo, chamam você e te fazem um monte de perguntas, a depender das respostas se escolhe o que combina melhor com a sua futura vida. Dizem também que se você foi mau na outra vida, na vida de agora, você paga. Nasce torto, com um pai e uma mãe malvados, nasce na favela ou nasce cachorro. Cachorro sofre muito, tinha uma pena imensa dos cachorros. Acreditava nessas coisas assim, porque não tinha outra coisa no lugar para acreditar. Ficava difícil entender, devia ser por causa do seu tamanho: dizem também que as pessoas boas na outra vida nascem vacas.
Vida de vaca é boa? Achava que não. A carne que vendem no açougue é de vaca, não é? Como nascer vaca pode ser bom, então? Quem contava essas coisas devia ter se enganado. As pessoas boas nas vidas passadas deviam nascer borboletas, aí sim, dá pra acreditar.
As vacas são boas, não tinha dúvida, davam leite, são mansas, mas por serem mansas deixam que os homens judiem delas. Os fazendeiros penduram chocalhos em seus pescoços, ferroam letras em suas costelas, matam, esquartejam e vendem aos pedacinhos as vacas. A bondade delas não ajuda em nada aí.
Está aí. Ainda bem que não tinha sido boa na sua vida passada, porque detestaria ter nascido vaca. Gostava de ter nascido menina.
