domingo, 19 de dezembro de 2010

Desejos e sonhos


 (Imagem: Duas Mulheres em Silêncio, Marcília Mourão)


Os meus sentimentos represavam todos aqui por dentro,  minando com mesquinharia para fora; os dela pareciam se derramar para o exterior  de uma maneira bela e incontrolável.

Se eu estivesse perdida como ela, estaria angustiada. Sabendo para onde eu devia ir naquele momento e conhecendo o itinerário a seguir já era angustiante. Angústia da certeza de que todos os dias havia o mesmo caminho a ser repetido, com as mesmas curvas e retas. A verdade é que eu não tinha certeza se eu era dona da minha vontade e das minhas escolhas ou se elas haviam sido implantadas lá; se existia alguma Lei Superior que controlava o meu destino ou as escolhas eram legítimas.


Olho para os pés enlameados da moça. Iguais aos meus. Mas ela tem ânimo para sorrir e brincar com seus próprios defeitos. É uma total estranha para mim. Descobri uma coisa sobre as pessoas: somos capazes de enxergar nelas aquilo que elas mostram ou aquilo que desejamos ver. Não existe visão perfeita do outro, mas o outro pode escolher ser para nós exatamente igual sempre, o que facilita classificá-lo em nossos planos. Os imprevistos é que são o diabo.  Deviam ser sempre iguais as pessoas para que fosse mais fácil amá-las ou odiá-las.

Minhas costas começam a doer incomodamente. Depois de passar vários sustos e apertos naquele dia, finalmente, o sangue ia esfriando, os analgésicos perdiam o efeito e a dor dos ferimentos aparecia, dando-me a gostosa sensação de que meu corpo estava realmente ali.

Eu vinha guardando comigo todos os acontecimentos inusitados daqueles dois últimos dias para mim mesma. Não havia muitas pessoas com quem eu pudesse conversar. A moça ao meu lado,  desamparada em suas andanças sem rumo tinha ares de estar buscando algo desconhecido.  Quando conhecemos exatamente o objeto da nossa busca, empenhamos mais força e somos mais determinados em alcançá-lo. Buscas sem sentido nos levam a toda parte sem nunca acharmos o que nos pareça com o objetivo inicial.

O anonimato entre nós duas serviria de proteção  contra aquele sentimento mesquinho de que os outros não tem nada a ver com nossas vidas.

Fui contando os fatos resumidamente, cada pausa  emoldurada com largos acenos com os braços,como se eu fosse capaz de abrir um televisor na frente das duas para mostrar melhor a cena. Quando narramos um fato, mesmo que tenha ocorrido com nós mesmos, ocorre um distanciamento que permite que julguemos melhor. Dali do ponto de ônibus gelado, aquela sucessão de episódios parecia uma piada.

- Você acredita em ironia do Destino? – Meio segundo depois eu já sentia a estupidez da pergunta, feita à uma cigana. Como eu podia saber se ela acreditava mesmo em destino? Hoje em dia, não dizem mais pra você acreditar nisto ou naquilo, está tudo aí nas prateleiras do comércio, dá pra acreditar em tudo de vez ou em nada. Não costumava ficar me batendo pelo que acredito ou não, mas naquela noite me sentia propensa a duvidar da ordem das coisas.

- Ainda bem que as minhas desditas podem ser úteis a você.Alguma utilidade é melhor do que utilidade nenhuma.

Olho de novo o relógio, o tempo quase parando, meu corpo doendo e doendo, o rosto de Alice indo e vindo na minha cabeça. Nunca sobra tempo para fazer tudo que desejamos, nunca sobra forças para realizarmos nossos sonhos , nos sonhos nunca têm espaço para caber tudo que amamos. Corremos atrás dos sonhos, para trás ficam objetos inesquecíveis que não cabem em nossas bolsas de viagem. Ir. Voltar. Quanto do que prezamos conseguimos queimar para alcançar o que desejamos?

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