sábado, 30 de outubro de 2010

O medo guardado nas entranhas


Em nenhum lugar Sissi jamais encontrou segurança. Desde pequena conseguia ouvir os ruídos ameaçadores das árvores e suas sombras em formas de garras e mãos. De qualquer sombra  saltava um espanto, boca escancarada para devorar. Sozinha, sofria o desamparo. Acompanhada, sofria a exposição. Uma multidão mostrava-se tão perigosa quanto um deserto. Não existia paz em parte alguma, por onde quer que andasse, o medo a acompanhava guardado nas entranhas, aguardando um momento de vulnerabilidade para escorrer para fora e atacar.

Precisava ocupar a mente e as mãos, desligar-se daquela natureza sensível às mudanças da lua, que enxergava maus presságios em todas as partes.
Se ela gostaria de se sentir segura? Não havia nada que desejasse mais na vida. 

Sissi não temia as pessoas por qualquer razão, temia por saber que as outras pessoas também hospedavam a mandíbula perfurante do medo dentro de suas almas, umas a liberavam em ocasiões comuns a todos, outras, como Sissi, não possuíam controle, deixavam-se dominar e enfraquecer, faziam-se instrumento de uma força muito superior à compreensão, perigosas em seus extremos de covardia. Os covardes estão sujeitos a atos desesperados e impensáveis aos que possuem alguma coragem. Toda a sua energia concentrada em não sucumbir às próprias fraquezas, precisava de um exterior que lhe passasse o mínimo de elementos para resguardar algum auto-controle. Trancas grandes nas portas, cercas elétricas, alarmes, morar em um bairro com um bom patrulhamento policial, pagar um seguro de saúde excelente, andar com spray de pimenta na bolsa, qualquer subterfúgio que ajudasse a criar uma imagem de segurança. Imagem, porque seguros nós nunca estamos. 

Com a sinalização de Glória, Sissi olhou para cima e analisou as pequenas câmeras, posicionadas nos cantos. Os olhos mecânicos captam os olhos malignos que espiam de dentro de cada um? Duvidava. A vida inteira, ninguém ao redor além dela percebia aquilo que espiava das frestas e resfolegava nos momentos de silêncio, gritava em momentos de euforia, agarrava em momentos de solidão. Era coisa que não se deixava capturar por olhos céticos ou mecânicos, brota de dentro de cada um e se esconde com perfeição. A maioria sabe que está lá, adormecido como um vulcão inativo, borbulhante em seu interior monstruoso, tranqüilo sobre a superfície morna, tanto sabe, que dia a dia as pessoas vigiam mais umas às outras, em seus aparatos tecnológicos, monitoramentos artificiais das bestas submersas.

A Sissi intimidava ser monitorada, aos fregueses deveria surtir algum efeito também. Adelfa também parecia intimidadora. Sissi sentiu que desagradava à mulher, porém, agradar aos outros não entrava em suas prioridades. Queria ser invisível e passar incógnita aos olhares de todos. Ter Adelfa em seu grupo já lhe fazia sentir melhor, ignorando os problemas que ela pudesse ter em se relacionar com o resto da equipe de atendentes, o seu jeito de lidar com as pessoas era útil ao cargo que ocupava. Sissi adoraria possuir um pouco daquela contundência, mas não possuía. Seu orgulho era muito pouco para se ferir com as palavras de Adelfa, especialmente porque sabia que era incapaz de se achar melhor do que qualquer ser humano. Os outros atendentes aos seus olhos seriam sempre mais bonitos, inteligentes e eficientes, devia existir alguém no mundo que não fosse melhor do que Sissi aos olhos dela, infelizmente esta pessoa ainda não lhe fora apresentada. No dia desta apresentação, com certeza Sissi choraria com pena da pobre alma, tentando até se unir a ela, para que as duas juntas errassem juntas em sua trilha de medo e insignificância.

Ver o nojo de Ed fez Sissi enjoar, saiu rápido para respirar o ar gelado da noite. Ainda era cedo, ao menos a entrevista durou muito menos do que Sissi previra, não sentia vontade de voltar para casa, pretendia adiar ao máximo a volta. Sentia que a noite de trabalho seguinte seria uma noite de libertação, o primeiro avanço em direção a uma vida nova menos povoada de inseguranças e angústias. Os tormentos comuns da convivência, do dia a dia, as disputas mesquinhas entre egos pareciam menos aterrorizantes do que estar sozinha consigo mesma e com Tommy. Por esta noite, achava, o filho estava mais seguro com a Mary, com sua adolescência cheia de arrogância e livre de temores.

Chamou um táxi, era possível usar o metrô, mas um táxi a fazia sentir-se mais protegida. Arrependimento. Sentada no banco de trás, após dizer o endereço, cruzou com os olhos do motorista a observando no retrovisor interno. Eram olhos atemorizantes, grandes, de sobrancelhas grossas. Olhou para outro lado, seria apenas uma coincidência. Prestou atenção nos letreiros comerciais, nas luzes de neon que passavam rápidas. O taxista não tagarelava como a maioria deles fazem, isso a incomodava. Faltavam forças para entabular alguma conversa sem importância que a acalmasse. Estar presa ao cinto começou a sufocá-la, como se estivesse atada indo para o seu cadafalso, sem a misericórdia de uma venda que a cegasse aos olhares invasores dos transeuntes. No segundo farol, os olhos não se encontraram no reflexo do espelho, mas Sissi percebeu que ele havia desviado o dele instantes antes. O táxi dobrou uma esquina na direção errada, e Sissi estourou:

- Pode parar aqui. Vou visitar uma amiga.

Era madrugada e Sissi mal sabia o nome do bairro em que estava, sabia que precisava descer do táxi, pois suas mãos suavam muito, o coração disparava de forma a atrapalhar a respiração, as pernas tremiam e a presença do taxista lhe era insuportável. Pagou a corrida e dobrou a viela mais próxima, para sumir o quanto antes do olhar daquele homem. Estava aliviada e perdida. Mais perdida do que qualquer outra coisa. Nasceu naquela cidade, sentia-se capaz de chegar até seu bairro por instinto, guiando-se pelos telhados altos de velhas casas tradicionais. Não estava muito longe, era achar a entrada certa e a rua principal e chegaria em casa em pouco tempo. A chuva veio encharcar seus planos, correu para as árvores para se esconder da chuva gelada, ouviu um trovão e estremeceu, os raios eram um de seus algozes infantis, imaginou-se logo atingida por um raio embaixo daquelas árvores, seguiu carreira então para campo aberto em lugar de voltar para as ruas habitadas.
Em poucas passadas já não estava correndo para fugir dos raios, corria para sentir a chuva bater em seu rosto e sentir a roupa úmida colar-se ao corpo. A frente avistou as ruínas dos Mckoy, a chuva não fazia menção de diminuir, entrou vencida pelo susto de um trovão mais alto.
Dentro da construção de pedras, ouviu uma respiração ofegante como a sua, a escuridão impedia que visse o que estava lá dentro junto com ela. Paralisada pela perspectiva de não estar só, recuou para lugar nenhum. Outro relâmpago cortou o céu e iluminou instantaneamente o interior da velha casa, um homem estava lá em pé a observando.

A voz não queria sair, porém calar também seria inaceitável. Juntando forças de onde não havia, em voz trêmula e fina, Sissi perguntou:

- Também está perdido?

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