sábado, 30 de outubro de 2010

Coletivos

Os dois primeiros coletivos se recusaram a parar no ponto em que a figura coberta por sujeira estava em pé, gesticulava com estardalhaço para chamar a atenção. O terceiro freou de brusco para evitar o choque com a mulher de cabelos esvoaçantes que aguardava no meio da rua com a palma da mão direita erguida. Quando arrancou do bolso interno do casaco as moedas para pagar as passagens o cobrador desatou a chorar como uma criança de creche. Saltou a roleta, então. O homem chorava demais para discernir o troco. Sentou no meio do ônibus e escorou a cabeça no vidro lateral, para observar os letreiros luminosos, que já iam se apagando àquela hora da madrugada, porém se mantinham brilhantes e sedutores com seu piscar solitário. Até alcançar o bairro do Asilo e se deparar com os estragos causados pelas explosões da turba em fuga. 

O lugar sempre fora um espaço em ebulição. A chaleira havia finalmente chiado. Para trás ficara a desorganização dos muros fendidos, a terra e o cal, enfermeiros lastimosos. Adentrou e desadentrou silenciosamente em seu antigo e novo lar para buscar uma pá. Quando terminou de ferir a terra para desenhar a pequenina cova estava da cor do chão. Mas não havia mais lágrimas, somente a secura na garganta, que pelo visto, ocupava seu corpo inteiro. Estaria febril se possuísse vida... Vida! Seu corpo lastimava a vida perdida. Um maluco teimoso teimara em não fugir para longe e se escondera atrás de uma árvore. Alice pressentiu o seu olhar boboca pousado em sua nuca. Foi dizer um olá, mas terminou por sugar todo o sangue do insano corpo enquanto ele descrevia os delírios de morrer em um mundo destruído pelo King-kong. A sensação de roubar a vida era doce-macia-úmida-lisa-quente-orgástica. Ter a flecha do anjo fincada no peito da alma e fazer a cara de gozo de Santa Teresa. E depois do êxtase advinha a quietude. 

Esmagou a cabeça da vítima com uma viga de construção. Os objetos pareciam mais leves e desta vez não teve vontade de chorar. Mas sentiu imensa simpatia pelo medo de macacos gigantes do homenzinho e comprometeu-se a enviar alguma doação para os gorilas do Camboja em sua memória.

Entrou em torpor no porão do Arkham, dentro do fosso do elevador abandonado. No poente, despertou coberta por ratos que lambiam suas roupas imundas. Sem sinal do velhinho, preparou seu banho escaldante na velha sala de sempre e saída da água higienizadora emergiu uma nova mulher de formas mais pálidas, feição mais serena, limpa. Sedutora em seu olhar inquiridor. A mesma de sempre com algo mais.

A fome ainda não havia picado a sua carne quando ela tomou lugar em um novo coletivo. Desta vez o motorista parou de pronto, solícito em aguardar a gentil moça de cabelos compridos que subia em sua condução. Da figura maltrapilha da noite anterior só restava a insistência em olhar fixo para cada poste do caminho, a má impressão cedera ao vestido longo limpo, aos cabelos penteados e às sandálias enfeitadas de miçangas. Os postes não a impediram de sentir uma onda de não sei o quê de triste vinda de um passageiro à sua frente. Do rapaz exalava um cheiro-ruído de desespero e angústia, a mulher pôs-se tão envolvida com o sentir do sentir do rapaz que desceu atrás dele no centro da cidade e o seguiu até começar a chover.

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