quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Manhã

A manhã não lhe trouxe nada além de vazio. Imenso vazio, impossível. Melhor seria sentir o nada, essa inexistência de sentir. Sentia, porém, o vazio, uma saudade da inconsciência dos sentidos. Seus sentimentos dispensavam explicações, doía. A alma doía, o peito doía, carregava o peso de um morto sobre a cabeça. O bolo incompreensível obstruía-lhe a garganta.
Não queria se levantar, nem ali na manhã recém-nascida, nem nunca. Dormir vinha sendo o único alívio diante da angústia intolerável dos dias. Perdera o amor por si, a vontade de comer, a expectativa de um futuro. Mexia-se porque ao redor lhe requisitavam. Algumas coisas ainda dependiam de um movimento seu, aguardava o momento em que se entregaria a imobilidade total.
A necessidade, essa mãe de todos os infortúnios, obrigou-lhe a voltar ao mundo dos vivos. Precisava trabalhar, bocas dependiam dos frutos de seu trabalho. Ainda que não se prendesse afetivamente a nada, a obrigação impunha-se sobre o seu ânimo.
A procissão diária das pessoas zumbi arrastava-se ao seu redor sem despertar-lhe dó ou raiva. Infelizes, todas as pessoas do mundo pareciam-lhe redondamente infelizes sem futuro. Como não percebiam? Estavam cegos pela ilusão de um bônus salarial, de quilos perdidos aqui e ali, de roupas novas e manias caras. Tudo aquilo pesava muito pouco para o alívio de sua dor. Se ao menos o mundo inteiro lhe deixasse em paz, talvez, quem sabe, talvez, pudesse pensar.
A reflexão já lhe salvara diversas vezes de abismos. Reter as palavras e tecer as ideias, deixar passar a tristeza e a mágoa, remoer no silêncio as milhares de possibilidades de se ver livre dos problemas. Mas o silêncio.... ah, o silêncio! O silêncio era impossível! Havia sempre alguém por perto para ligar uma TV, arrastar um móvel, passar pisando forte pela calçada em frente.

Apesar de tudo, alguns sons lhe acalmavam. Os cães latindo e uivando de madrugada, o ruído longe dos caminhões passando na rodovia. O vento assobiando no farfalhar das folhas. O zumbido surdo da torre de telefonia fazendo fundo ao borbulhar da água enchendo o reservatório do banheiro. Sons noturnos. Tudo o que se perdia com a volta da manhã. Ensolarada e lotada de movimentos desnecessários chegava novamente a manhã, e com ela, nada além do vazio.

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