Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, percebeu que não era mais a mesma do dia anterior. Suas entranhas revolviam-se em seu ventre, como uma pia velha que há muito não sabe o que é encanação nova. O conteúdo do seu estômago decidiu que o ralo era melhor recanto do que os seus intestinos, e pelo ralo escoou, esverdeado a princípio, líquido transparente após horas de vômitos intermináveis.
O que havia? Caíra vítima da última
epidemia apocalíptica da moda, mais um mega vírus filho das mudanças climáticas
daquele início de milênio amaldiçoado, que as pessoas teimavam em enxergar como
um novo milênio igual a qualquer outro? Morreria assim, sem o glamour de uma
tísica tez dos poetas moribundos? Nem mesmo o amarelão de uma exploradora do
continente selvagem, carregada em liteira por africanos lustrosos sob o sol
escaldante do novo mundo? Nada disso, aliás, só isso, só o cheiro desagradável
de seu próprio conteúdo compartilhado com a fossa, pois ali, naquele fim de
mundo latino americano não havia sequer uma companhia de águas e esgotos, havia
só a fossa.
Na fossa, era onde estava. Decidiu
consultar um médico. Amigo da família. Se é que as pessoas acreditam em
amizades a uma altura dessas. Como quem não diz nada, ele disse, sem remorso, “
a senhora vai se tornar duas”.
“Eu? Por que eu? Não concordo.”
Não havia erro. Esta era uma
daquelas coisas que independem da nossa vontade. Bipartir-se-ia. Seu código
genético geraria uma cópia imperfeita de si, em versão miniaturizada,
causando-lhe, naturalmente, grande incômodo no processo.
“Que
me aconteceu?” pensou. Não era nenhum sonho. Inconcebível que sem o seu consentimento alguém
houvesse determinado coisa dessa tramontana. Nenhum aviso prévio, carta
requisitória, processo licitatório. Só o baque.
“De
qualquer maneira, era, capaz de ser bom para mim — quem sabe?” Trabalhou para habituar-se ao
ocorrido. Contou aos pares, avisou seu patrão. Seu marido chorou ao saber do
ocorrido. Resignou-se mais tarde, serenado, talvez, pelo fato de que não seria
ele a vítima de tão terrível metamorfose!
Meses transcorreram, terríveis
momentos de expectativa. Antes de dividir-se, precisava dobrar de tamanho.
Multiplicaram-se as células, convulsas umas sobre as outras, celebrando entre
si casamentos misteriosos pelos mitocôndrios. Ia ficando cada vez mais difícil
caminhar, comer, dormir, respirar. Todos tentavam, apesar das evidências em
contrário, convencer-lhe de que isso era normal.
Até aquele fatídico dia, deitada
sobre a amurada de seu jardim, tomando o último sol não cancerígeno da manhã,
com seu imenso ventre de mulher duplicada para cima. Olhou para o belo céu azul
e sentiu que já havia passado tempo demais ali, quis virar-se para a direita e
endireitar-se para entrar em casa, quando percebeu que não o conseguiria sem
imensa dor. As vértebras não lhe obedeciam mais. O ar fugiu, a dor atordoou seu
orgulho, a voz saiu-lhe fraca:
“Socorro”.
Havia, por fim, se transformado em
um personagem de Kafka. Tal qual Gregor Samsa metamorfoseado em inseto gigante,
aprisionara-se de barriga para cima no quintal de sua casa, incapaz de se
levantar sem recorrer aos familiares.
A mãe veio em seu auxílio.
“Toma juízo menina, onde já seu viu
grávida deitar no chão desse jeito!”