A manhã não lhe trouxe nada além de vazio. Imenso
vazio, impossível. Melhor seria sentir o nada, essa inexistência de sentir.
Sentia, porém, o vazio, uma saudade da inconsciência dos sentidos. Seus
sentimentos dispensavam explicações, doía. A alma doía, o peito doía, carregava
o peso de um morto sobre a cabeça. O bolo incompreensível obstruía-lhe a
garganta.
Não queria se levantar, nem ali na manhã
recém-nascida, nem nunca. Dormir vinha sendo o único alívio diante da angústia
intolerável dos dias. Perdera o amor por si, a vontade de comer, a expectativa
de um futuro. Mexia-se porque ao redor lhe requisitavam. Algumas coisas ainda
dependiam de um movimento seu, aguardava o momento em que se entregaria a
imobilidade total.
A necessidade, essa mãe de todos os infortúnios,
obrigou-lhe a voltar ao mundo dos vivos. Precisava trabalhar, bocas dependiam
dos frutos de seu trabalho. Ainda que não se prendesse afetivamente a nada, a
obrigação impunha-se sobre o seu ânimo.
A procissão diária das pessoas zumbi arrastava-se ao
seu redor sem despertar-lhe dó ou raiva. Infelizes, todas as pessoas do mundo
pareciam-lhe redondamente infelizes sem futuro. Como não percebiam? Estavam
cegos pela ilusão de um bônus salarial, de quilos perdidos aqui e ali, de
roupas novas e manias caras. Tudo aquilo pesava muito pouco para o alívio de
sua dor. Se ao menos o mundo inteiro lhe deixasse em paz, talvez, quem sabe,
talvez, pudesse pensar.
A reflexão já lhe salvara diversas vezes de abismos.
Reter as palavras e tecer as ideias, deixar passar a tristeza e a mágoa, remoer
no silêncio as milhares de possibilidades de se ver livre dos problemas. Mas o
silêncio.... ah, o silêncio! O silêncio era impossível! Havia sempre alguém por
perto para ligar uma TV, arrastar um móvel, passar pisando forte pela calçada
em frente.
Apesar de tudo, alguns sons lhe acalmavam. Os cães
latindo e uivando de madrugada, o ruído longe dos caminhões passando na
rodovia. O vento assobiando no farfalhar das folhas. O zumbido surdo da torre
de telefonia fazendo fundo ao borbulhar da água enchendo o reservatório do
banheiro. Sons noturnos. Tudo o que se perdia com a volta da manhã. Ensolarada
e lotada de movimentos desnecessários chegava novamente a manhã, e com ela,
nada além do vazio.