Ana Castro
Era uma vez um burrinho que nasceu feio feito a
necessidade. Não daquelas necessidades bobas, de comprar Play Station 2 ou
bicicleta de marcha. Necessidade mesmo, daquelas que você passa quando não chove
e o rio da sua cidade seca e você precisa tomar água de uma cacimba. O burrinho
foi criado no interior, era gordo, ao ponto de ninguém perceber que era feio. E
ele era bom, carregava tudo que lhe pediam. O burrinho pensava que tudo poderia
ficar pior se não houvesse mais a carga, porque o dono lhe dava comida só por
causa da carga. Ele quebrava as costelas carregando as pedras que o dono
mandava e o dono retribuía com a comida. Não se importava que cada dia a carga
ficasse mais pesada e a comida mais pouca, contanto que houvesse carga,
pensava, haveria comida. E água.
Na cabeça do burrinho, penso eu a narradora, esta
devia ser a vida de todos os burrinhos, ele havia nascido para ser um burrinho
cargueiro, que comia devido à bondade de seu dono. E à carga.
Mas o mundo, como todos bem sabem, não se compõe
somente de burrinhos e cargas. O mundo é grande e cheio de perigos e surpresas.
Um dia parou de chover, quer dizer, ficou sem chover por muito tempo. Anos.
Dizem que foi por causa do desmatamento das matas ciliares, outros dizem que os
gases liberados pelas vacas foram tantos que o buraco da camada de ozônio se
tornou grande demais, a temperatura da terra mudou e o clima junto. Aí parou de
chover. Quer dizer, ficou sem chover por muito tempo. Anos.
Sem chuva, ninguém mais precisava
de pedras. O dono do burro perdeu o emprego das pedras. Ele vendeu o burro para
dar de comer aos filhos, e o burrinho trocou de sina. O novo dono era dono
também de uma charqueada. Lá se foi o burrinho, triste, preso na carroceria de
um caminhão velho, junto com vários outros burrinhos de todas as cores e
procedências. Iam para charqueada, que como todos bem sabem, trata-se do local
onde se entra burro e sai-se charque. Ali, na estrada cumprida, o burrinho
aprendeu que todos os burrinhos são iguais, dividem a mesma sina de animais
tristes, explorados, com mais carga do que comida. Aonde iam, não sabiam, mas
iam.
Chegaram. Viagem sem água, nem comida, nem sombra. O
motorista manobrava para estacionar próximo à rampa de acesso. Os urros dos
burrinhos incomodados formavam uma sinfonia triste de doer coração de quem
ainda leva o coração no peito. Perguntas sem resposta pipocavam na mente do
nosso burrinho: onde estamos? Por que não nos deram água? O que vai acontecer
conosco? O novo dono precisa que carreguemos pedras? A que horas nos darão
palha? Todas as respostas deixaram-se ficar sem respostas enquanto o fundo do
caminhão se aproximava lentamente da entrada do matadouro. Devo aqui dizer que
o destino certo do nosso burrinho e de seus companheiros burrinhos teria se
cumprido não fosse a intervenção de uma força maior. Um decreto presidencial
ordenava o fechamento de todas as charqueadas do Estado e a destinação imediata
dos equinos, muares e asininos para um novo Ministério que acabara de ser
fundado: o Ministério de Apoio Mútuo às Emergências e Desastres Naturais.
Parece-me que esta nossa história ambientada em um futuro alternativo caminha
para um desenlace incerto. O que não é de todo mal, pois o destino de todos nós
é incerto até que se concretize.
Os burrinhos desceram do caminhão 45km a frente,
equilibraram-se pela rampa bamba até um curral abastecido com água, palmas,
palha e sombra para todos. No meio da noite, uma luz forte foi acesa e homens
usando luvas de proteção vieram ao curral para borrifar um líquido sem cor nos
burrinhos, passaram pomadas em suas feridas e trocaram as ferraduras rachadas.
Os outros burrinhos eu não sei, mas o nosso ficou contentíssimo, ele entendia
que estavam recebendo tratamento cuidadoso, isso só poderia significar que
seriam novamente empregados. E foram.
A grande seca não atingiu apenas o negócio de pedras
do seu antigo patrão, mas todo o país. Cidades com bilhões de habitantes que se
amontoavam em prédios altos como as nuvens morriam de sede e fome, não havia
água o bastante para gerar energia elétrica que movesse os motores de sucção de
água do subsolo. O combustível fóssil se exauriu em poucos meses para aquele
país que dependia de sua agricultura, agora impraticável devido à falta de
chuvas (dizem que o combustível alcançou preços proibitivos, dizem até que o
governo preferiu vender o combustível aos estrangeiros na mesma situação a
usá-lo com seus cidadãos, mas essas histórias eram rapidamente sufocadas pela
urgência do trabalho duro). No lugar de braços mecânicos e motores bebedores do
óleo negro mais caro do que ouro, foram colocados braços, lombos e pernas de
homens, mulheres e todo o tipo de animais de tração. O transporte era feito por
animais e pessoas puxando outras pessoas, algumas vezes as pessoas e animais
iam puxando as carcaças dos antigos automóveis, carregando outras pessoas ou
mercadorias. Os animais giravam imensas rodas de moinhos que içavam do subsolo
água para matar a sede, carregavam água salobra do mar para tanques de
dessalinização e carregavam o refugo para piscinas artificiais onde se criavam
peixes e outras criaturas marítimas das quais nosso burrinho nunca ouvira
falar. Nas cidades, não se viam mais ônibus ou caminhões, muito menos carros
pequenos, viam-se bicicletas, carroças, enormes carroças assemelhadas a
barcaças sendo puxadas por 5 parelhas de touros. E pessoas, muitas pessoas, que
preferiam caminhar à sombra dos edifícios colossais ao invés de cozinhar dentro
deles sem refrigeração artificial. O comércio mudara rapidamente, em uma
semana, o burrinho e seus companheiros não serviam para nada além da
charqueada, carne barata para gente pobre comer. Na outra semana, eram mais
valiosos do que qualquer automóvel de luxo.
Finalmente o burrinho sentiu-se necessário, sentiu
que o que fazia era bom. E ele era bom, carregava tudo que lhe pediam. Sabia
que os donos nunca deixariam de precisar da água, sempre lhe dariam um pouco
desta, e teria palha e sombra. Amava os homens porque precisavam de seu
trabalho, amava-os mais ainda agora: sabia que os homens também carregam as
coisas quando necessitam. O burrinho pela primeira vez foi feliz e continuou
sendo até o dia de sua morte.
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